Revistas “aleatórias” em aeroportos: as opiniões de profissionais da aviação sobre se há ou não racismo

As inspeções aleatórias de passageiros são previstas pela Agência Nacional de Aviação desde 2019. Mas passageiros negros têm denunciado que a prática pode ser racista. 

As inspeções aleatórias de passageiros são previstas pela Agência Nacional de Aviação desde 2019. Mas passageiros negros têm denunciado que a prática pode ser racista. 

Por Andressa Franco

Imagem: Reprodução

Não é incomum que as palavras “aeroporto” e “racismo” apareçam juntas em manchetes. Só no último mês, relataram casos de racismo nesse espaço o deputado estadual Prof. Josemar (PSOL-RJ), os cantores Baco Exu do Blues e Jojo Todynho. 

São casos que colocam aeroportos como cenário de hostilidade e se somam a outros já denunciados por nomes como a presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Keila Simpson; o deputado estadual Renato Freitas (PT-PR) [imagem de destaque]; as ex-BBB’s Gleici Damasceno e Camilla de Lucas; a influenciadora e apresentadora Ana Paula Xongani; a professora de inglês Samantha Vitena, entre outros.

Dentre tantas práticas deste ambiente “hostil” para pessoas negras, uma em específico tem chamado atenção: as inspeções aleatórias de passageiros, previstas pela Resolução 515 da Agência Nacional de Aviação (ANAC) desde 2019.  

O procedimento consiste em “aleatoriamente e sempre que julgado necessário, os passageiros devem passar por medidas adicionais de segurança, que podem incluir busca pessoal, inspeção manual da bagagem de mão e a utilização de detectores de traços de explosivos e outros equipamentos de segurança”. A inspeção é realizada pelo Agente de Proteção da Aviação Civil. O passageiro tem a opção de ser revistado em uma cabine reservada. Caso se recuse, não poderá embarcar e o agente deve acionar a Polícia Federal.

O deputado Renato Freitas é um crítico recorrente da ação, na qual já foi sorteado duas vezes. “Há uma justificativa genérica de revista aleatória, mas não há um dado objetivo, de transparência de quais são os critérios. Ela agiu como se tivesse lidando com um suspeito, não há dúvidas de que há critério racial”, disse em julho, depois de passar pelo procedimento pela segunda vez em um intervalo de dois meses. 

Renato Freitas é revistado em aeroporto — Imagem: Reprodução

Situações como estas não são algo novo. Em 2017, por exemplo, a então vereadora Marielle Franco foi submetida à revista no aeroporto de Brasília, e denunciou que teve até seu ‘black’ vasculhado. Contou ainda ter recebido apoio de outra mulher negra que também foi revistada na mesma ocasião. 

Em maio, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, afirmou que questionaria o ministro Márcio França, de Portos e Aeroportos, se a resolução deveria ser mantida. Para Dino, não estava claro se o procedimento é efetivamente aleatório. O ministro não descartou que a prática pode se configurar como racismo.

Sorteados na inspeção contam experiência

No último dia 01 de outubro, o deputado Prof. Josemar (PSOL) estava no aeroporto de Brasília, quando o pórtico do raio-x apitou devido ao cinto que estava usando. Depois de retirar o cinto, a máquina apitou de novo. Dessa vez para uma revista aleatória. 

“Aquilo me indignou, eles disseram que era apenas uma revista aleatória, e que 3% dos passageiros precisam fazer. E eu falei: ‘como 3%, se todas as vezes sou eu ou outros negros?”, lembra o deputado, que afirma já ter sido selecionado pela revista, embora não costume andar muito de avião. Ele se recusou a ir à sala reservada, e a Polícia Federal foi acionada. “Muito despreparados. Um deles veio com a mão na arma, como se estivesse lidando com uma situação de confronto.”

Deputado Prof. Josemar (PSOL) passou por revista aleatória no Aeroporto de Brasília – Imagem: Reprodução

Depois disso, o parlamentar conta que viu o pórtico apitar novamente para outro homem negro, e que um outro homem negro o abordou no aeroporto, contando ter passado pelo mesmo. “A pessoa negra é tipicamente suspeita. Recebemos vários relatos.”

Quem também enfrentou o procedimento com indignação e questionamentos, foi Guilherme Soares Dias, fundador do Guia Negro, uma plataforma de afroturismo, que realiza experiências turísticas em diversas cidades brasileiras.

Guilherme Soares Dias, fundador do Guia Negro – Imagem: Arquivo Pessoal

O consultor em diversidade foi parado no Aeroporto de Salvador, em abril deste ano. “É sempre uma situação vexatória, porque você percebe que é a única pessoa de uma fila sendo escolhida. Eu sempre tento questionar por que o procedimento é realizado, sempre tento orientar o funcionário a fazer da melhor forma.”

O que sabemos e o que é confidencial sobre as revistas 

Conversamos com uma agente de inspeção aleatória, também negra, para entender sobre o procedimento na prática. Para ela, não há dúvidas de que a abordagem é aleatória. 

“A inspeção é o que o próprio nome diz: aleatória. A seleção não é feita por nada que o passageiro esteja portando, nem por desconfiança. Existe um sistema programado no pórtico detector de metais, e ele faz a contagem de passagens através de um sensor. Não saberia te dizer o algoritmo em que ele trabalha ou após quantas pessoas ele toca, pois é impossível de contar, mas o aparelho é regulado para parar uma quantidade de X pessoas”, explica Alessandra*.

A agente detalha que o pórtico funciona com dois tipos de alarme, um que identifica que o passageiro ainda porta algum tipo de metal e uma sirene que o seleciona para inspeção. Seguindo o padrão internacional da Organização da Aviação Civil Internacional. A profissional afirma que nunca viu os protocolos serem descumpridos. 

O que chama atenção de quem questiona a aleatoriedade da máquina, é a falta de transparência. Informações como número, frequência e o perfil das pessoas revistadas, não é revelado por “questões de segurança”.

Ao relatar a abordagem que passou em Salvador em sua coluna na Folha de S. Paulo, por exemplo, o fundador do Guia Negro lamentou não poder “ver a máquina ‘por trás’ do raio-x”. “Há racismo na tecnologia. Pessoas negras são mais confundidas pelo reconhecimento facial, torneiras automáticas não nos identificam. A gente questiona porque são as pessoas negras que mais têm relatado passar por essas revistas”, avalia Guilherme. 

“Você pode escolher o perfil a ser selecionado à luz da inteligência artificial. Não existe aleatoriedade naquilo ali”, acrescenta o deputado Prof. Josemar. 

Kênia Aquino é comissária de bordo há 15 anos, é co-fundadora do coletivo Quilombo Aéreo, e também vê semelhanças entre a tecnologia dos pórticos e algoritmos racistas. “O algoritmo é uma máquina, mas quem programa é um ser humano.” 

“Máquinas fotográficas, por exemplo, não foram criadas para reconhecer as peles negras. Essa pode ser uma máquina também programada para reconhecer certos fenótipos e estereótipos”, opina Laiara Amorim, comissária de bordo há 11 anos e também co-fundadora do Quilombo Aéreo. 

Para ela, o objetivo da inspeção é buscar o que o detector de metais não consegue: drogas ilícitas. A comissária destaca que existem empresas que fabricam pórticos cujo equipamento pode ser ajustável conforme a necessidade. “Se houver algum tipo de programação que identifica se é uma criança, mulher ou homem, talvez possa identificar raças. Nos Estados Unidos, por exemplo, pessoas de origem árabe relatam que vão com a certeza de que serão parados pela revista. E lá eles têm equipamentos de última geração. Antes de chegar no raio-x, o racismo já está na porta do aeroporto esperando.”

A Afirmativa entrou em contato com empresas brasileiras que atuam na fabricação de equipamentos de segurança e prevenção, como pórticos detectores de metais, para tentar entender suas possíveis configurações. Mas não obtivemos retorno.

Laiara também põe em dúvida as informações sigilosas por trás do procedimento. A Diretriz de Segurança da Aviação Civil contra Atos de Interferência Ilícita – DAVSEC nº 02-2016, por exemplo, estabelece os parâmetros quantitativos para a realização da inspeção aleatória. Mas de suas 12 páginas, 9 não têm conteúdo público, são sigilosas. 

Kênia Aquino e Laiara Borges são fundadoras do Quilombo Aéreo, instituição que visa trazer visibilidade aos tripulantes negras (os) da Aviação Civil Brasileira – Imagem: Joca

Para Alessandra*, procedimentos de segurança altamente divulgados podem ser burlados. “Informação só é bom para pessoas bem-intencionadas e, infelizmente, não há como fazer essa distinção. Essas questões mais técnicas nem o agente de proteção tem ciência. A abordagem é feita de forma padrão, não é pra ser constrangedora nem racista”, pondera.

Além disso, é proibido filmar o momento da revista. Josemar tentou filmar o procedimento, mas foi impedido. “A lei diz que você pode filmar qualquer servidor público em serviço e atividade. Uma resolução não está acima da lei”, opina o deputado. Guilherme também ressalta que sempre tenta filmar para deixar registrado.

Transparência e investimento em tecnologia são possíveis caminhos

Diante do ocorrido, Josemar buscou colegas parlamentares para debater o tema. No entanto, nenhum projeto concreto chegou a ser discutido. Em 2021, a Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados rejeitou o Projeto de Decreto Legislativo 726/19, que suspenderia a inspeção aleatória de passageiros em aeroportos. “É uma medida desnecessária. Temos tecnologia suficiente para não ter esse tipo de revista naquele espaço. Quando pobres e negros acessam espaços, o racismo se manifesta dessa forma.”  

Guilherme concorda. O consultor em diversidade lembra que estar na posição de suspeito é recorrente para pessoas negras. “É sempre um momento em que você está se sentindo importante, e te colocam num lugar de subalternidade. Historicamente as pessoas negras foram perseguidas e fiscalizadas. É uma memória do DNA.”

Para Alessandra*, o receio e a defensiva por parte de pessoas negras em procedimentos como esses é completamente compreensível, visto que o mundo foi instruído de que essa segurança é contra nossa população. “Não é um procedimento pensado para inspeção somente de pessoas negras, mas é possível entender o porquê do receio. Infelizmente independente da forma que ela for feita, não acredito que isso mude.”

Para Laiara, a medida precisa existir para garantir a segurança do voo. A preocupação da comissária, é a possível existência de algum viés que retire a aleatoriedade. 

“Não precisa ter um contador exposto, para que a pessoa possa escolher a fila do raio-x que vai passar. Mas em um lugar onde, caso essa pessoa questione porque foi selecionada, pudesse acessar”, sugere. Para ela, é possível haver essa flexibilização porque o maior desafio do Brasil nos aeroportos é o tráfico de drogas, não atos terroristas. 

Kênia ressalta que também é importante considerar o investimento em tecnologias mais avançadas, como scanners para detecção de drogas. “Alguns aeroportos internacionais tem outras máquinas para inspeção corporal. Com grandes hubs da aviação, o Brasil tem como pensar nisso e mitigar os efeitos do racismo que a gente suspeita. Estamos só questionando. São poucos os passageiros pretos. E esses poucos são constrangidos.”

*Nome fictício utilizado para preservar a identidade da fonte

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