Entre os saldos da primeira edição presencial, está o encaminhamento de um documento em defesa do julgamento, sentença e cumprimento da pena por parte de José Alexandre Passos Góes Silva, que cometeu o assassinato
Por Andressa Franco e Patrícia Rosa
O último domingo (27) marcou os três anos do assassinato de Elitânia de Souza da Hora, mulher negra, liderança quilombola e estudante de serviço social, que teve sua vida interrompida aos 29 anos pelo então companheiro Alexandre Passo Góes Silva, na cidade de Cachoeira (BA). Ela foi morta a tiros na noite do dia 27 de novembro de 2019, quando voltava da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde estudava.
Elitânia tinha terminado um relacionamento abusivo com Alexandre, a jovem já havia registrado queixa na delegacia por agressão e tinha uma medida protetiva, que foi descumprida pelo agressor. Ele foi preso no dia do enterro da vítima. Após se apresentar na delegacia, o homem segue detido em prisão preventiva.
A advogada especialista em ciências criminais e direito das mulheres, Janine Souza, destacou que o acusado poderá ir a júri popular e já teve a sentença emitida pela justiça de Cachoeira. Ela afirma que existem provas suficientes de que Alexandre é o autor do assassinato da ex-companheira. Contudo, a defesa interpôs recurso para o Tribunal de Justiça da Bahia, que não foi acolhido, assim como interpôs um recurso perante o Superior Tribunal de Justiça, que também não foi acolhido.
“Estamos aguardando que o processo retorne para o juízo de Cachoeira para se marcar data de julgamento do júri popular”, completa. A advogada e Co-presidenta da organização feminista Tamo Juntas, lembra que o crime que tirou a vida de Elitânia, além de ser a expressão máxima da violência, também é consequência de um sistema de justiça que fecha os olhos para os casos de violência doméstica no Brasil. “Convém destacar que o réu possui atualmente mais duas ações penais, de crimes que cometeu contra Elitânia, oriundos de medidas protetivas.”
Uma das amigas da jovem estudante era Rosângela Cardoso, que a descreve como uma pessoa dedicada, responsável e amorosa. As duas se conheceram em uma empresa, onde Elitânia estagiava. “Ela era a única que só tinha disponibilidade de estagiar uma vez na semana por conta do trabalho e estudo. Mesmo com poucas horas, se destacou e passou a fazer parte da nossa equipe, sendo registrada. Eu pude observar o processo de amadurecimento dela”, conta. Rosângela declarou ainda que a amiga saiu da empresa depois de começar o relacionamento com Alexandre, “tenho plena convicção da influência que ele exercia sobre ela”.
Um “divisor de águas”: essa foi a expressão usada para destacar o impacto que a morte brutal causou na vida de Rosângela. “A partir desse fatídico cenário de dor e ódio que se misturam, eu hoje consigo observar mais, me proteger e lutar para que essa situação seja cada vez mais falada, e que seja feita a justiça.”
3ª edição da Semana Elitânia de Souza – Pela Vida das Mulheres Negras,
Com objetivo de denunciar o contexto de constantes violências que as mulheres negras estão inseridas e cobrar justiça pelo feminicídio de Elitânia, a 3ª edição a Semana Elitânia de Souza – Pela Vida das Mulheres Negras teve início na última terça-feira (22), encerrando neste domingo (27).
Desde a primeira edição, a Semana se alinha à agenda internacional feminista dos 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher. A programação do evento foi realizada no auditório da Leite Alves, na UFRB, em Cachoeira(BA), e é organizado pelo Instituto Odara, em parceria com o Coletivo Angela Davis, o CAHL – UFRB, professoras e estudantes do curso de Serviço Social da universidade, além de outras organizações e coletivos.
Esse ano marca a primeira edição presencial da Semana Elitânia. Para Joyce Souza, integrante do Instituto Odara à frente do evento, foi impactante ouvir os relatos sobre a vivência com Elitânia no próprio CAHL. Outro ponto que destaca é a possibilidade de dialogar com a gestão do Centro e da UFRB para cobrar posicionamento institucional frente ao caso, “com um quantitativo considerável de estudantes e representação expressiva dos quilombolas”. Entre os resultados das atividades, foi encaminhada a construção coletiva de um documento em defesa do julgamento, sentença e cumprimento da pena por parte de José Alexandre Passos Góes Silva, que cometeu o assassinato.
Outro saldo da mobilização destacado por Joyce, foi a garantia da memória de Elitânia entre as ruas de Cachoeira. “Rememoramos sua existência junto à sociedade cachoeirana através do ato político de caminharmos pelas ruas do centro em marcha, nos pronunciarmos e colarmos os cartazes exigindo justiça e promovendo a visibilização sobre o enfrentamento à violência contra a mulher.”
Violência contra mulheres negras
As mulheres negras são as maiores vítimas da violência no Brasil. Em 2021, o número de mulheres brancas vítimas de feminicídio foi de 37,5%, entre mulheres negras o número chega a 62%, de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A edição do anuário de 2020 mostra que as mulheres negras representavam 61,8% das vítimas, enquanto 36,5% foram mulheres brancas.
Para Joyce, o papel dos coletivos e organizações em defesa dos direitos das mulheres negras, é para além de garantir que a memória dessas mulheres esteja viva e que se cumpra justiça. É sobretudo exigir que o Estado se comprometa com políticas públicas que resultem efetivamente na redução dos casos de violência contra mulher.
“Nós temos a responsabilidade de exercer o controle social das políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulher, de exigir a geração de dados sobre os índices de violência e os atenuantes; de incentivar e apoiar a denúncia por parte das mulheres violentadas; averiguar o funcionamento dos instrumentos públicos de apoio e acolhimento às mulheres; de denunciar o sucateamento de todos os serviços públicos de proteção à vida das mulheres.”, lista Joyce, que também é doutorando em antropologia.
Para ela, o Estado tem sido mais uma instância de violência contra as mulheres. De forma que, uma das denúncias feitas pelo Instituto Odara e o movimento de mulheres negras, se refere à situação das Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher. “Que negam atendimento às mulheres que sofreram violência sexual fora do âmbito doméstico, conforme os relatos de restrição de atendimentos apenas aos casos que se enquadrem na Lei Maria da Penha. Ou o modo em que as mulheres são abordadas em instituições policiais e de saúde.”
Joyce ressalta ainda a construção e gestão da Casa da Mulher Brasileira em Salvador, atualmente chancelada pela Prefeitura Municipal. O instrumento é a principal ação do “Programa Mulher Viver sem Violência”, desenvolvido pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e sancionada em 2015, no governo Dilma Rousseff. Entre os seus pressupostos fundamentais, afirma Joyce, constam o caráter democrático e descentralizado da administração, bem como a transparência dos atos públicos e fomento ao controle social.
Além do funcionamento das Casas Abrigo, para garantir segurança em encaminhar as mulheres em situação de violência, na certeza de que serão acolhidas e assistidas nessas instituições. “Precisamos saber os números de mulheres atendidas, a incidência, o perfil sociorracial, mas também sobre a qualidade dos serviços prestados ou mesmo sobre as negativas de atendimento e os atenuantes da peregrinação dessas mulheres na busca por serviços.”
Os casos de feminicídio contra mulheres negras, critica Joyce, não são repercutidos, muito menos aqueles que acontecem no interior do estado. Logo, as reivindicações da Semana Elitânia não são especificamente sobre Elitânia, mas sobre cada mulher agredida, assassinada e violentada, que permanece anônima. “Suas famílias destruídas; crianças órfãs; algozes sem julgamento a mercê de vitimizar outras mulheres; e o Estado simplesmente não dá respostas satisfatórias, mesmo em um contexto de governo de esquerda como é dito na Bahia.”, finaliza.