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“Ser mulher negra e quilombola é uma batalha diária”  –  conheça Juliana Soares, voz do Rio Grande do Sul em Marcha por Reparação e Bem Viver

No segundo perfil da série Mulheres que Marcham, conhecemos uma ativista quilombola e mãe, que carrega o legado das mulheres negras do Rio Grande do Sul, uma região vendida como a ‘Europa brasileira’, que invisibiliza a história e a contribuição da população negra
Colagem: Karla Souza

Por Patrícia Rosa

Em novembro, Juliana Soares vai deixar a cidade de São Lourenço do Sul (RS) para atravessar o país até Brasília (DF). Coordenadora do Programa de Educação Antirracista da Fundação Luterana de Diaconia (FLD), Juliana também atua no Comitê da Marcha de Mulheres Negras de Pelotas, com quem trabalha em conjunto com sua organização para levar 80 mulheres negras da região para marchar no 25 de novembro, em Brasília.

Ela carrega na bagagem e na memória as sementes plantadas pela mãe e pela avó, mulheres que lhe ensinaram a resistir e ter o compromisso de garantir um futuro digno para os filhos, Ana Júlia e Henrique. Aos 40 anos, ela se prepara para estar na Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, um passo que, para ela, é também um grito: afirmar que o povo negro do Sul existe, resiste e segue em movimento.

“É saber que minhas irmãs, vizinhas e filhas não precisarão trabalhar de forma exaustiva por salários miseráveis. O Rio Grande do Sul é vendido como a ‘Europa brasileira’. [Bem Viver] é lembrar que organizamos este estado antes da abolição, produzimos o charque, vencemos guerras – e tudo isso é apagado. É resgatar essa memória e viver com dignidade.”

Filha de Dona Deleci Nogueira Soares e quilombola do Coxilha Negra, Juliana é uma das seis irmãs criadas em meio a fortes desigualdades sociais e econômicas. A infância foi marcada por uma disparidade social gritante: vivia próxima de famílias brancas de origem alemã. Foi na escola que, pela primeira vez, Juliana foi chamada de “negra” de forma pejorativa, episódio que a levou a rejeitar a própria negritude. 

Um estudo da PUCRS Data Social mostra que as pessoas negras representam 18,9% da população gaúcha. Entre elas, a taxa de pobreza é de 19,5%, quase o dobro da registrada entre pessoas brancas (10,8%). A extrema pobreza segue o mesmo padrão: 4,3% entre pessoas negras, contra 2,2% entre brancos.

Imagem: Arquivo Pessoal

“Como é ser uma mulher negra e quilombola num estado extremamente racista, com boa parte da população não racializada, ou seja, pessoas que são consideradas padrão? É uma batalha diária. É um desafio diário, sobretudo quando você está num contexto rural em que se está muito longe das informações imediatas, das políticas públicas, que chegam tardiamente.”

Pontes para o enfrentamento às estruturas racistas

Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde cursou Educação no Campo com ênfase em Ciências da Natureza e Agrárias, encontrou referências como Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, que ampliaram sua compreensão sobre a importância do movimento de mulheres negras e do enfrentamento às estruturas racistas.

“Eu não poderia passar quatro anos na universidade, pegar meu canudo de professora e não militar, não seguir o legado de luta e enfrentamento ao racismo. É na universidade que eu me fortaleço, é onde começo a fazer uma leitura de mundo para além do meu município.”

Imagem: Arquivo Pessoal

A articulação em frentes coletivas e políticas veio mais tarde, quando a ativista passou a frequentar o movimento negro da região, especialmente o Movimento Negro Kizumbi, de São Lourenço do Sul, organização com mais de 35 anos de existência, reconhecida como patrimônio cultural e imaterial do município. “Foi ali que aprendi a nossa história e comecei a descolonizar o meu saber.”

Filhos, trabalho e luta

Hoje, Juliana transmite esses ensinamentos a Ana Júlia, de 18 anos, e Henrique, de 21, mostrando que o cuidado também é uma forma de resistência. Os dois cresceram vendo a mãe conciliar maternidade, trabalho, estudos e militância. Ela lembra que não foi fácil e que muitas vezes se sentiu culpada, mas reconhece que esse percurso foi fundamental para a própria formação racial, para a consciência de classe e para a educação dos filhos.

“No começo, era bastante difícil, porque o meu filho e a minha filha eram menores. Eu sempre fui muito militante; se dava para ir, eu ia de carona, de moto ou de ônibus.”

Com base nesta trajetória, ela educou os filhos, na busca constante por letramento racial, explicando a importância do ativismo e os preparando para enfrentar uma sociedade racista e não aceitá-la. Juliana fala orgulhosa, que assim como ela, os dois filhos são educadores, militantes e estudantes.

“Meu filho e minha filha são educadores, duas pessoas que enfrentam o racismo, então não vejo como uma dificuldade o fato de eu ser trabalhadora, militante e mãe.”

Atuação política e mobilização para a Marcha

Com essa consciência, a ativista se prepara para estar em Brasília na Marcha das Mulheres Negras de 2025. Para ela, Bem Viver é ter território, garantir que seus filhos possam voltar para casa em segurança e preservar a memória do povo negro no Sul.

Imagem: Arquivo Pessoal

“Eu decidi ir para a marcha no dia em que fiquei sabendo dela. Mais do que isso, decidi que não iria sozinha: levaria muitas mulheres do Rio Grande do Sul comigo.”

Ela reconhece as dificuldades para arrecadar recursos, principalmente quando é destinado para mulheres negras. “Buscar recursos já é difícil. Quando é para mulheres negras, ainda mais. Gera desconforto porque ameaça uma elite que é beneficiada por esse processo que nos marginaliza. Mas seguimos buscando apoio.”

Graças ao trabalho coletivo com a FLD, foi possível garantir a participação de duas representantes de cada uma das 40 comunidades quilombolas acompanhadas pelo projeto que ela coordena.

“Fizemos um mapeamento da região de Pelotas para levar mulheres quilombolas à Marcha. Buscamos recursos para deslocamento, hospedagem e alimentação de 80 mulheres das comunidades que atendemos. Também conseguimos dois ônibus para mulheres periféricas da região metropolitana de Porto Alegre.  A organização é dinâmica.”

A luta que segue na próxima geração

Para Juliana, a Marcha será um marco político de 2025. “Nós, mulheres negras do campo, das comunidades quilombolas e das pequenas cidades, somos muitas vezes esquecidas. Mas estamos vivas, em movimento, e vamos chegar em Brasília para dizer isso.”

Ao lado das vozes de tantas mulheres negras, também estará a de Ana Júlia, mostrando que essa luta já se renova na próxima geração. “Até a gente chegar à nossa tão sonhada liberdade, tem todo um caminho para percorrer e essas meninas precisam estar apropriadas de todas essas questões, se alimentar do passado, se fortalecer no presente, para enfrentar as questões que virão no futuro”, conclui. 

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