Apesar de se tratar de área federal, o INEMA autorizou a construção para empresa que tem entre os sócios o presidente da Globo e o ex-presidente do Banco Central
Por Andressa Franco
Imagem: BoipebaTur
O ano é 2014, o Brasil sediava a Copa do Mundo de Futebol, quando as comunidades tradicionais de Cova da Onça, Moreré, Monte Alegre e Boipeba, localizadas no baixo sul da Bahia, se reuniram em audiência pública com o objetivo de barrar a construção de um empreendimento no seu território.
Quase 10 anos depois, nesta terça-feira (4), a comunidade volta a se reunir – dessa vez em um evento conduzido pela Ouvidoria Cidadã da Defensoria Pública da Bahia – com o mesmo objetivo. Uma audiência pública está marcada para a próxima quarta-feira (5) na Assembleia Legislativa.
A tentativa de empreendimento é da empresa Mangaba Cultivo de Coco LTDA, coberta de negligências judiciais e fundiárias. O grupo, que tem entre os sócios o ex-presidente do Banco Central (BC), Armínio Fraga, e o presidente do Grupo Globo, José Roberto Marinho, quer construir um resort que ocuparia 20% da Ilha de Boipeba.
Pelo projeto, o condomínio Fazenda Ponta dos Castelhanos contará com duas pousadas de 25 quartos, outras 25 casas, pista de pouso, uma marina de médio porte para desembarque de lanchas e motos aquáticas, além de um campo de golfe de 370 hectares.
“Que parte não entendeu?”
A audiência de 2014 foi convocada pelo INEMA – Instituto Do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, com a participação dos empreendedores. “A comunidade dizendo que não queria e os empreendedores e o INEMA tentando convencer”, lembra Benedito*, pescador local. Ainda assim, naquele primeiro momento, a vontade da comunidade falou mais alto.
“A comunidade estava em peso combatendo os argumentos. Inclusive de que o único lugar preservado para construção era nossa Ilha. Se historicamente a gente preservou, não é pra destruir”, desabafa Márcio*, nome fictício dado a um pescador artesanal de Cova da Onça que pediu para não ter a identidade revelada.
No entanto, no último dia 7 de março, o INEMA autorizou a licença para construção do megaempreendimento, contrariando o Ministério Público Federal (MPF). Em 2019, o órgão já havia recomendado “interromper o processo de licenciamento ambiental”. Com a nova tentativa do INEMA, no dia 14 de março, o MPF subiu o tom: “Que parte não entendeu?”.
A licença dada pelo órgão não é o único descumprimento de normas no processo. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, prevê que antes de serem tomadas decisões que possam afetar os bens ou direitos de comunidades tradicionais, elas precisam ser consultadas. O que não aconteceu.
De quem é a Ilha?
De acordo com a Constituição de 1988: “Toda ilha oceânica e terreno de marinha são bens da União”. Além disso, Boipeba é considerada APA (Área de Proteção Ambiental). A Superintendência do Patrimônio da União (SPU) é a responsável por fiscalizar a área.
Embora a Constituição seja clara quanto à posse da ilha, há décadas os moradores observam grilagem no território e sofrem com conflitos socioambientais por especulação turística e imobiliária.
Márcio tenta resumir. Tudo começou – ou se agravou – quando o governo da Bahia permitiu que a Companhia Valença Industrial, uma empresa de tecidos, utilizasse as madeiras da ilha para queimar nas caldeiras da sua fábrica.
“Quando não tinha mais madeira pra queimar, a empresa ao invés de devolver pro estado, vendeu para Mário Pinto”, conta Raimundo. Trata-se do dono da fábrica, que por meio do regime arrendador e arrendatário, conforme análise documental, se apropriou das terras. Os nativos realizavam o trabalho, e Mário Pinto ofertava áreas aos camponeses, que trabalhavam informalmente para os fazendeiros.
“Depois Mário Pinto passou para o antigo prefeito de Valença: Ramiro Campelo Queiroz”, acrescenta Márcio.
Segundo a Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR), em 2008, a área foi adquirida pela Mangaba Cultivo de Coco. A escritura com valor de transação de R$ 25 milhões condicionou o pagamento de R$ 10 milhões deste total ao registro da escritura e obtenção do aforamento da área perante a SPU. O aforamento é uma permissão da União para que posseiros ou proprietário do imóvel tenham direito a usar os terrenos.
Outra condição era a expulsão de pequenos produtores que ocupavam a Fazenda Ponta dos Castelhanos, garantindo que assinassem a cessão dos pequenos lotes que ocupavam.
“Nem a Mangaba, nem o Ramiro nunca tiveram posse sobre esta área”
O interesse de empresários em Boipeba não é novidade. Um exemplo conhecido é o italiano Fábio Perini, responsável por empreendimentos na ilha e também na vizinha, Morro de São Paulo.
“Ele [Perini] já botou segurança armado pra acompanhar os nativos quando passamos pelos caminhos que estão cercando. E olhe que ainda não tem nada construído”, denuncia Benedito da Paixão Santos. Conhecido como Bio, é pescador artesanal de Boipeba, e atua na área do turismo ecológico.
Mas, por que existe tanta fragilidade na questão fundiária das áreas públicas que deveriam ser protegidas pelo Estado e garantidas às comunidades tradicionais?
“Essa é a grande questão”, analisa Leonardo Fiuza, professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e advogado associado da AATR. Ele explica que quem exerce a posse de fato sobre esse território são as comunidades locais. Para o professor, a SPU se omite em proteger seu próprio território, bem como em destinar esse patrimônio a quem é de direito.
“Nem a Mangaba, nem o Ramiro nunca tiveram propriedade ou título definitivo de posse sobre esta área”, acrescenta. Isso porque, o que a empresa tem em mãos é apenas uma inscrição de ocupação do Registro Imobiliário Patrimonial, que é um tipo de autorização de uso concedida pela SPU. Foi concedida primeiro ao ex-prefeito de Valença, depois transferida para Mangaba. Mas, se trata de um documento temporário e revogável. “Não tem definitividade pra que se implante um empreendimento desse tipo”, aponta o professor. Ramiro Queiroz, inclusive responde a um processo na justiça baiana para reintegração de posse de um terreno de 400 hectares em Valença, e já foi preso por desvios de verbas públicas.
Os moradores acreditam que os empresários passaram os últimos anos se articulando para cooptar a comunidade com promessas de emprego. “Foi disseminado por órgãos públicos que a pesca artesanal não sustenta mais as comunidades. Não é verdade. Fora que tem o turismo comunitário, mas o poder público não investe”, pondera Benedito*.
Enquanto isso, as comunidades solicitaram à SPU o Termo de Autorização de Uso Sustentável dos territórios tradicionais da ilha de Boipeba para fins de subsistência, o que ainda não foi garantido.
“É um projeto de extinção da memória do povo de Boipeba”
Para Benedito*, o empreendimento inevitavelmente vai resultar na expulsão da população local. “Aqui as comunidades conseguem garantir pelo menos o alimento através da pesca, do extrativismo ou das pequenas roças. Na zona urbana eles perdem isso.”
Bio também acredita que os moradores serão expulsos caso o empreendimento seja implantado. “É só olhar para Morro de São Paulo, o mesmo aconteceu lá e os nativos foram encurralados. Se criou uma favela conhecida como Buraco do Cachorro, onde eles estão. A mesma coisa vai acontecer aqui”, prevê o pescador.
“É um jeito de extinguir a memória do povo de Boipeba. Nossos tataravós criaram essa ilha muito antes desses fazendeiros se dizerem donos”, completa João Batista, de 38 anos. Ele faz parte da Associação Quilombola de Moreré. Pescador, e é filho de pescador e marisqueira.
Projeto é incompatível com área de proteção ambiental
Além dos impactos socioeconômicos, é preciso pensar nos impactos ambientais. Para Benedito*, o primeiro deles é uma destruição do bioma Mata Atlântica na área. Além disso, os moradores ficariam “imprensados” entre o condomínio e o mar, sem acesso ao seu território. Afeta ainda a área pesqueira, que também é local de desova de tartarugas. “Cova da Onça é um dos maiores espaços de coleta de mangaba na Bahia. Esse espaço, de extrativismo e também de caminhos para área de pesca, também está ameaçado”, lista.
João Batista também é condutor de turismo ecológico. Ele defende o turismo de base, não predatório. “Esse projeto vai privatizar o Rio Castelhano, utilizado para pesca e passeios ecológicos; vai fechar caminhos tradicionais; desmatar árvores centenárias; expulsar animais; tomar as terras onde plantamos. Isso não cabe em uma APA! Já temos nossa forma de vida e vivemos bem. Não precisamos trabalhar em resort”, rechaça o quilombola.
Todos esses impactos, afirma Raimundo Siri, serão irreversíveis. “É um modelo de turismo que não quer a gente perto. A ideia é expulsar.”
INEMA como “gestor de destruição ambiental”
Com o pedido de revogação da licença de instalação pelo MPF, a comunidade está otimista. “Apesar do INEMA estar sendo um gestor de destruição ambiental, a gente acredita que o governador e o secretário do meio ambiente vão ter a sensibilidade de impedir essa destruição”, acredita Benedito*.
Entre as muitas críticas ao órgão, ele destaca a divulgação “mentirosa”, que será liberado ao empreendimento menos de dois hectares. “As empresas tem a estratégia de liberar pedaços aos poucos. Porque 2% não dá conta do que querem no projeto original”.
Raimundo Siri aponta que “o INEMA vem praticando coisas vergonhosas e com a conivência do governador”.
Para Leonardo Fiuza, existem técnicos sérios e comprometidos atuando no INEMA. No entanto, acredita que existe uma decisão política que pesa mais. “Eu faço parte do conselho gestor da APA e temos grande dificuldade em acessar informações sobre esse empreendimento”. O professor aponta ainda a parcialidade do governo do estado que em 2019 indicou a Fazenda Ponta dos Castelhanos como área a ser privatizada. O pescador João Batista acredita na vitória e na resistência ancestral da comunidade. “Somos gerações de 300 anos. Só minha mãe aqui tem quase 80 anos, ela vem de uma linhagem de pescadores e marisqueiras criados na ilha, é uma das fundadoras de Moreré. Nessa época não tinha turismo. Minha palavra hoje é de luta. Não desistir daquilo que meu antepassado cuidou.”
*Nome fictício. A fonte preferiu não se identificar por medo de retaliações.