Thiffany Odara: mulher trans negra, que tem a história  marcada por lutas, conquistas, desobediências, resistências e atravessamentos

Para a ativista trans,  a necessidade de lutar por território veio desde a infância, quando a família foi desalojada no ínicio dos  anos 90

Por Patrícia Rosa

Mulher trans, negra, yalorixá, pedagoga, ativista, mãe, educadora social e assessora parlamentar. Essa é Thiffany Odara, que entre as várias funções e títulos hoje é também mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade na UNEB, e especialista em Gênero, Raça e Sexualidade pela mesma universidade. Thiffany fez história, ao ser a primeira mulher trans a concorrer ao cargo de ouvidora da Defensoria Pública da Bahia.  

“Eu sou um corpo existente que transcende os limites da transgeneridade, um corpo que desobedece as normas racistas, que ousa e enfrenta diariamente a violência”, se autodescreve Thiffany. 

Para ela, a necessidade de lutar pelo seu território se deu desde o momento em que se viu no mundo. Nascida no Centro Histórico de Salvador (BA), sua família foi despejada de casa quando ela ainda era bebê, devido ao projeto de revitalização da região, reconhecida como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1985. 

Entre os anos de 1992 e 1993, o então governador, Antônio Carlos Magalhães, deu início a um projeto de intervenção arquitetônico chamado “Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador”, que priorizou o apelo turístico, em detrimento à comunidade moradora da região. De acordo com informações da Conder (2006), cerca de 2000 famílias foram retiradas da localidade.

“O território nos foi negado como pessoas negras. Se a gente for fazer uma análise da construção desse país, de tudo que nossos ancestrais contribuíram, nada nos foi dado.  É necessário pensar em uma política de reparação para as pessoas negras.”

Por uma educação desobediente e travestilizada

A luta de Thiffanny por desbravamento de espaços também aconteceu no campo da educação. Ela é licenciada pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB), sendo a primeira mulher trans a se formar em pedagogia na instituição. “Educação é um mecanismo de transformação social, é uma prática de sociabilidade, de interação com o outro, de interação com as diferenças. A importância de uma travesti na educação é levar de fato a mensagem de que nós construímos com as diferenças e não podemos colocar as diferenças como reprodutoras e fatores de desigualdades sociais.”

Em 2020, ela lançou o livro ‘Pedagogia da Desobediência: Travestilizando a Educação’, que faz parte da coleção “Saberes trans”. A obra é baseada no movimento das travestis, debatendo o lugar desse público na sociedade por ambientes educacionais que sejam acolhedores e inclusivos para a comunidade.

No livro, ela afirma: “A pedagogia desobediente surge como uma proposta [de] educação que busca confrontar e subverter todo cis’tema de negação que recaia sobre os corpos dissidentes, em específico das travestis.”

Candomblé como filosofia de vida e resistência

Para Thiffany, o Candomblé é uma filosofia de vida e uma herança familiar. Ela faz parte de uma geração de mulheres do Axé e foi outorgada à Yalorixá do Terreiro Oyá Matamba, em Lauro de Freitas (BA), em dezembro de 2020.  Para ela ser uma Yalorixá, uma mulher trans e negra, também é uma disputa por território e uma luta por reconhecimento e respeito.

“Eu ainda sou discriminada, ainda sou violada, ainda sou minimizada. Eu ainda disputo território porque, quando a gente diz que tem uma casa de Candomblé, tem um terreiro, a gente disputa a construção daquele espaço, a importância daquele espaço, não só como espaço religioso, mas como espaço também sagrado, cultural e educacional.”

Os dados sobre racismo religioso no Brasil, apontam que esta é uma realidade crescente. Segundo dados do Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em 2019 foram registrados 477 casos de intolerância religiosa, 353 casos em 2020 e 966 casos em 2021. Os dados foram divulgados pelo II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, que aponta que as comunidades de religiões de matrizes africanas são as mais atingidas.

“Embora tenhamos apresentado que a transição religiosa no Brasil vem apontando para um aumento significativo dos adeptos das religiões de matriz evangélica, os dados do relatório indicam que as religiões de matriz africana – mesmo sendo uma minoria religiosa – são as mais atingidas pela intolerância religiosa”, diz o estudo.

Além dos desafios em busca de respeito dentro e fora da comunidade do axé, a sacerdotisa afirma que ainda enfrenta o descaso das autoridades . Em 2020, Thiffany denunciou que agentes da prefeitura se recusaram a entrar no terreiro para avaliar os danos provocados no imóvel causados por enchentes em um canal da região, que atravessa o terreno onde está localizado o terreiro. Na época, a sacerdotisa formalizou uma denúncia de  intolerância religiosa. 

“O racismo religioso é intencional e é ambiental quando a gente cultua a natureza e quando uma casa de candomblé briga para a revitalização de um rio, quando ela briga para que as plantas permaneçam, que as enchentes não aconteçam e se ela não tem resposta, não tem devolutivas, é porque é intencional.”

Esta é Thiffany Odara, símbolo de luta para comunidade trans, para povos de religiões de matriz africana. “O impacto e a relevância do meu trabalho está na produção de conhecimento e na garantia de direitos”, finaliza.

*Este texto faz parte da série Akofena: Mulheres Negras e Indígenas em Defesa de Seus Territórios

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