Egum e o terror do racismo

Inspirado no terror, clássico gênero do cinema ocidental, o filme Egum (2020), com roteiro e direção de Yuri Costa, tem se destacado também como representativo de um interessante movimento que vem sendo nomeado de “terror preto” (em inglês, “horror noire”). Sabe-se que os filmes de terror lidam com as fobias ocultas dos espectadores, seus medos e repulsas pelo

Por Lecco França*

 

Inspirado no terror, clássico gênero do cinema ocidental, o filme Egum (2020), com roteiro e direção de Yuri Costa, tem se destacado também como representativo de um interessante movimento que vem sendo nomeado de “terror preto” (em inglês, “horror noire”). Sabe-se que os filmes de terror lidam com as fobias ocultas dos espectadores, seus medos e repulsas pelo desconhecido, representado, muitas vezes, por forças, eventos ou personagens sobrenaturais. Em algumas das produções desse gênero, entretanto, pessoas negras são retratadas como esses seres repulsivos e temerosos, como analisa a pesquisadora estadunidense Robin R. Means Coleman, no livro Horror noire, publicado em 2011, um estudo sobre a representação negra no cinema de terror produzido nos Estados Unidos ao longo da história. Dentro da perspectiva dos filmes de “terror preto”, por sua vez, sujeitos pretos, de algozes, passaram a ser as próprias vítimas, cujo principal temor é causado pelo racismo. Nesse sentido, Coleman cita como exemplo o personagem negro Ben, do filme A noite dos mortos vivos (1968), que sobreviveu ao ataque dos zumbis, mas foi assassinado pela polícia branca, assim como os recentes Corra (2017) e Nós (2019), ambos dirigidos pelo estadunidense Jordan Peele, que também podem ser enquadrados dentro deste conceito.

Em Egum, é o genocídio de pessoas negras no Brasil que serve como mote para a trama. Em um país onde cerca de 70% das mortes por assassinato são de pessoas negras (segundo o Atlas da violência, 2017), o medo de ser morto a qualquer momento aterroriza essas populações, principalmente as que moram em regiões abandonadas pelo Estado e dominadas pela criminalidade. O filme se inicia justamente com uma epígrafe extraída do pensamento de Frantz Fanon sobre os efeitos da cor negra na vida e no inconsciente desses sujeitos: “Minha negrura era densa e indiscutível. Ela me atormentava, me perseguia, me perturbava, me exasperava”. Ao longo de décadas, este psiquiatra e filósofo martinicano investigou as consequências psicológicas da colonização europeia, a exemplo do racismo, em livros como o renomado Pele negras, máscaras brancas, publicado em 1952. O curta-metragem está dividido em três partes, intituladas “Primeiro abismo”, “Segundo abismo” e “Terceiro abismo”. A primeira parte destaca o retorno do irmão mais velho, jornalista consagrado, após anos afastado da família, depois da morte de Jonas, o irmão mais novo. Ele se depara com uma família, composta também pelo pai, a mãe, a irmã Eduarda e a avó, emocionalmente abalada; a mãe com uma doença inexplicável, o pai constantemente alcoolizado, a irmã e a avó acudindo e cuidando da mãe dele. O jornalista então tem que enfrentar o desafio de entender o que houve com ela, assim como tentar resolver todos aqueles outros problemas. A chegada de um misterioso casal, um homem e uma mulher brancos, que aparecem em sua casa à noite procurando seu pai para tratar de negócios é um dos pontos chave desta parte.

Na segunda parte, a mais velha, a avó, que carrega o conhecimento adquirido pelos ancestrais, revela o que precisa ser dito no momento exato, diante das inquietações e incertezas do neto. Tem-se a referência a Oyá (também conhecida como Iansã), orixá dos ventos e das tempestades, que também está relacionada ao culto dos mortos, e aos Eguns, palavra do iorubá que designa, nas religiões de matrizes africanas, como o candomblé, os espíritos de quaisquer pessoas falecidas, iniciadas ou não nesta religião. A canção “Xirê de Oyá” acompanha as sequências finais desta parte, que se encerra com as lembranças de Jonas que atormentam a mãe. A terceira e última parte dá continuidade aos sofrimentos e agruras da família com a partida de Eduarda, em uma alusão ao cruel processo de escravização de pessoas pretas, violentamente separadas de suas famílias ao longo da história do Brasil.

Apesar da mudança de posicionamento em relação aos algozes, neste filme, três elementos significativos do gênero terror padrão estão presentes, na construção do espaço, na iluminação e nos efeitos sonoros. Em relação ao espaço, a trama se passa em uma casa em frangalhos, localizada em uma região desprovida de boas condições estruturais e dominada pela violência. Esse descuido com o ambiente reflete a falta de cuidado de alguns personagens com eles mesmos e com os próximos, a exemplo do pai, quase que totalmente indiferente ao que acontecia ao seu redor nas suas ações. Essa situação, inclusive, ilustra também a presença do terror psicológico, subgênero do terror padrão, no qual o medo é gerado a partir da vulnerabilidade da mente humana a alguma situação ou alguma sensação que causa um desconforto mental, como por exemplo uma situação implícita ou fobia. A perda de um filho, a partida do outro e a doença da esposa paralisam o pai, que some de casa frequentemente e se entrega ao vício do álcool. A iluminação, por sua vez, quando usada de forma adequada, é certamente um dos elementos mais importantes de um filme de terror. Em Egum, optou-se pela iluminação pontual, em algumas cenas, tipo de iluminação que cria lentamente a tensão e guia os olhos dos espectadores, principalmente nas cenas noturnas. Para conseguir este efeito, a imagem é exposta de forma que tudo ao redor do círculo de luz esteja completamente escuro. Já em relação ao uso da música e os efeitos sonoros, Egum utiliza-se de sons não-lineares, aqueles que usam notas distorcidas e que são amplificadas à medida que a trama avança. Especialistas já concluíram que o uso disso eleva o impacto emocional das cenas. Para intensificar ainda mais o aspecto dramático da trama, o filme se encerra com a canção “Va pensiero”, que faz parte da ópera Nabucco (1852), do italiano Giuseppe Verdi, inspirada no Salmo 137 da Bíblia Sagrada. Também conhecida como o “Coro dos escravos hebreus”, ela relembra a história dos exilados judeus na Babilônia, após a perda do Primeiro Templo em Jerusalém, em 586 a.C., ilustrando a primeira diáspora da história. Entre seus versos destacam-se “as lembranças queridas e fatais”, “o som de lamento” e “o desejo de preencher o sofrimento com virtude”.

Egum é o segundo curta-metragem dirigido pelo cineasta carioca Yuri Costa. Em 2018, ele lançou Eleguá, primeira parte de uma trilogia temática, da qual Egum também faz parte. Produzido a partir de financiamento coletivo e com uma equipe majoritariamente negra, Egum foi desenvolvido como seu Trabalho de Conclusão de Curso em Comunicação Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado Egum: um filme de terror negro, no qual analisa as relações entre cinema negro brasileiro, representação e terror. O filme tem sido exibido em diferentes mostras e festivais de cinema no Brasil e já foi premiado como Melhor Filme: Mostra Foco, na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

 

*Professor universitário, pesquisador, escritor, cineclubista, curador e crítico de cinema. Membro da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN). E-mail: leccofranca@gmail.com.

 

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