Codinome Maria
Se eu me apresentasse, tudo seria previsível
É provável que a minha escrita esteja decorada
Por um pequeno grupo de pessoas que insistem em acreditar no que eu falo
Sobre o que eu vi no mundo
Pelos diários que faço em meu Instagram
Algumas pessoas acham que eu escrevo bem
Existe um número muito baixo de pessoas negras, brasileiras e ativistas na França
Me identificar, primeiro, perderia a graça
Segundo, me colocaria em um risco que não existe, mas existe, ao mesmo tempo
Medo é uma coisa
Receio é outra coisa
Prevenção é uma terceira coisa da qual falamos, mas temos poucos recursos para colocar em prática
TUDO ISSO COMEÇOU QUANDO EU TINHA 16 ANOS
Era manhã do dia 10 de outubro, um sábado bonito. O verão custando a se despedir e o outono querendo chegar depressa. Após uma caminhada objetivamente sem rumo, havia uma música instrumental bonita e convidativa vindo de algum lugar.
Em um local histórico, qualquer espaço é motivo de atenção.
Uma igreja em pedras gigantescas e com música parece um museu interativo. A música estava sendo tocada, pois era o batizado de algumas crianças.
Eu não sou católica ou protestante. Cristo, Nossa Senhora Aparecida e São Benedito muito me ensinam, mas nenhuma reflexão me levou até ali, apenas cheguei. Entrei ali por reconhecer aquele conjunto de símbolos como algo que me reconectava a um momento que aconteceria no Brasil, no dia das crianças, e eu não poderia participar: o batizado e casamento no religioso de pessoas amigas, em uma roça de candomblé, na minha casa.
Ver aquela igreja e tudo ali dentro me arrebatou. Ver a vida das pessoas, as palavras ditas em francês, traduzidas pouco a pouco na minha mente, me lembrou o que aconteceu há um mês dali. Meu casamento e o batizado de meu afilhado, também no candomblé. Eram exatamente as mesmas palavras, em religiões diferentes, em países completamente distantes.
Comuniquei minha família sobre a beleza da vida. Sobre como é preciso estar de olhos abertos, sem fones de ouvido enquanto se passeia com amigos. Foi difícil aprender que isso é sobre educação, mas, sobretudo, é sobre carinho com quem está a sua volta. Sobre atenção também. Nunca se sabe quando se estará no fogo cruzado, tentando decifrar se o tiro é da música ou da rua.
Já estava aqui há 14 dias. Já estou aqui há mais de um mês. Com essa, é a terceira vez que venho e, agora, publicamente, posso dizer que aqui é minha segunda casa, apesar de tudo.
PRIMEIRO: CORTE
Quando eu estou em casa, eu escolho o que me interessa. No Brasil, eu tenho pouco contato com notícia. Aqui, idem. Todavia, eu acesso portais de notícias para entender o espaço onde estou, mas isso demora e eu acabo sendo informada pelas pessoas que estão comigo. No dia 25 de outubro, ainda estava sem dormir direito. Recebi muitas mensagens perguntando se eu estava bem e que não era para ir ao 11ème, pois havia uma pessoa com facas no local e a polícia estava compartilhando como uma tentativa de ataque. O local é próximo ao antigo prédio da revista Charlie Hebdo, em Paris, que, hoje, possui um endereço secreto, logo depois o que ocorreu em 2015.
O julgamento de pessoas apontadas como envolvidas na morte de 12 pessoas (e 11 feridos), há cinco anos, começou no dia 02 de setembro de 2020.
SEGUNDO: CORTE PARALISANTE
Tudo aqui passa muito rápido. De repente, me vi beneficiada pelas mesmas férias que estudantes que já estão se cansando de um ano letivo tão atípico quanto esse pandêmico. No dia de despedida de estudantes, 16 de outubro, eu estava sentada na entrada da escola, vendo passar os slides da televisão que compartilha as notícias da comunidade escolar e notei um trabalho interessante sobre as eleições nos Estados Unidos. Era uma pergunta. Kamala Harris. “Did you know her? (Você sabe quem é ela?)”
Todo mundo estava muito feliz. O Halloween mobiliza muito as juventudes por aqui e é animador ver adolescentes felizes. Saímos da escola e passamos no supermercado. O centro comercial lotado de estudantes indo para casa. Minutos depois recebemos a notícia: Samuel Paty, um professor, tinha sido morto em Conflans-Sainte-Honorine.
TERCEIRO: CORTE ADOECEDOR
Refletindo sobre os efeitos da colonização (invasão de terra, espaço e povo) e colonialidade (invasão da mente) (Maldonado-Torres, 2018), e me lamentando por essa morte, a flor de dentro fechou e foi salva pela visita de uma amiga brasileira. Foi salva por ligações, pela família, pelo amor e pelo trabalho. Passando por uma montanha russa de dúvidas em meio à segunda onda da pandemia, finalmente, começo a ouvir a rádio… para me deparar com um atentado em Nice, 3 pessoas mortas, dia 29 de outubro.
Comecei a pensar sobre, enquanto mulher negra e brasileira, ter um corpo alvo. Sobre como independente de qual seja o nível de resultado de um mundo baseado na exploração, o que o contexto nos mostra é que ele nos afeta. Afeta a homens, mulheres, pessoas religiosas ou não, pessoas do sul ou do norte. De um lado o ódio é partilhado. De outro, o ódio é alimento para o posicionamento da violência.
A colonização nos arrancou lugares, pessoas, memórias, pouco a pouco e nos cobrou que trabalhássemos rápido para estabelecer a modernidade. A colonialidade nos arrancou sentidos e não nos deixa respirar enquanto comemos. Pensamos sempre sobre criar algo rápido. Enquanto isso, não conseguimos explicar como é o gosto de um sorvete. Como criar algo rápido, em um dia, seja no campo das ideias ou da ação, para realinhar o futuro com base em um passado de séculos?
Enquanto eu pensava, os jornais emitiam: Simone Barreto, chef e cuidadora de idosos, estava na Basílica de Notre-Dame de Nice e foi morta da mesma forma que o professor Samuel Paty, com o adendo de não ter dito absolutamente nada. Depois de tudo, apenas enviou um recado à família. Ela estava em uma igreja e recebeu seus primeiros socorros em um restaurante.
Era a foto de uma mulher negra, baiana, mãe de 3, morada da França há 25 anos.
A COLONIALIDADE NÃO NOS INTERESSA, EM NADA. NEM MESMO A VIOLÊNCIA COMO FORMA DE RESOLUÇÃO RÁPIDA.
Eu poderia fazer chacota agora e dizer que, como brasileira, já tive um fuzil apontado na cara, em 2014, enquanto eu fazia um passeio com um ex-alguma coisa, homem negro, advogado, classe média alta, em um carro importado. Eu já vi amigos de infância portando armas e morrerem por isso. Vi meu primo morrer, em um domingo à noite, depois do jogo do flamengo, desarmado, em frente à igreja, com culto acontecendo e tudo mais.
Daí, eu lembro de uma coisa. Antes de vir, conversava com amigos sobre o que a vida pode nos oferecer ou nos tirar em outros países. Um amigo disse: – Eu consigo viver aqui no Brasil de boa. Aqui, eu serei abordado por uma pessoa que já sentiu fome na vida. Na Europa, as coisas são mais rápidas, são em massa. Acontecem atentados em larga escala.
A nossa teoria tem dado conta de refletir sobre tudo isso que eu tenho visto.
No Brasil, o fundamentalismo não chegou em 2016. Ele existe há séculos, justamente, por ter como base essa estrutura global que nos apequena diariamente: os resultados da colonização, que são exclusões usando raça, gênero, classe... Por isso, esta não é uma reflexão invalidando a percepção de que a violência em reação é o resultado do que aconteceu conosco.
Estamos tão afundadas nesse cenário que este é um desabafo tão óbvio e repetitivo para dizer que, diariamente, pessoas morrem por aí. Desconhecemos seus rostos, mas elas são corpos para alguém. Inclusive, na França, mas isso também não é um des-convite às viagens, à nossa oportunidade de conhecer o mundo.
A colonização instaurou processos de mudanças que foram extremamente abruptas. É da colonização a necessidade de tudo ser rápido. Tudo ter pressa, como se uma mudança fosse algo imediato e não um processo. Diante de um peso enorme, enquanto mulher PRETA e PROFESSORA de escolas públicas no mundo, fico sentindo que isso, de um lado e de outro, vai demorar para ter um fim, enquanto a colonialidade for central para a exploração e as revoluções acontecerem como resultado da colonialidade.