PEC 45, que criminaliza usuários de drogas, reforça encarceramento e genocídio da população negra

Aprovada pelo Senado na última terça-feira (16), a PEC sobre drogas criminaliza a posse ou porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente

Por Andressa Franco

O Plenário do Senado aprovou na última terça-feira (16) a PEC 45/2023, que acrescenta no art. 5º da Constituição a determinação de que é crime a posse ou porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente. O autor da proposta é o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

O placar foi de 53 votos a favor e apenas 9 contrários em primeiro turno, e 52 votos a favor e 9 contrários em segundo turno. Agora, a PEC segue para a Câmara dos Deputados.

A PEC das drogas, como vem sendo chamada, é uma reação ao julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Entorpecentes (Lei 11.343), sancionada em 2006. O texto em questão, determina que portar, cultivar ou transportar drogas para consumo pessoal sujeita a pessoa a medidas socioeducativas. O mesmo artigo orienta que, para determinar se a droga é para consumo pessoal ou para tráfico, o juiz analisará a natureza e a quantidade da substância apreendida, além das circunstâncias sociais e pessoais da ação.

“Quem nasce negro e pobre sabe exatamente como a justiça funciona no nosso país, onde a sentença varia de acordo com sua cor e profissão”, analisa Jessica Souto, diretora executiva da Movimentos, organização de jovens negros e periféricos que discutem a política de drogas no país. 

Jessica Souto, diretora executiva da Movimentos – Imagem: Reprodução Movimentos

Para ela, a legislação parece ter sido redigido com lacunas perfeitas, “quase que propositais”, visando perpetuar o racismo e as desigualdades que vitimam e encarceram corpos marginalizados e racializados. Outro ponto apontado pela diretora é o fato da decisão se orientar na maioria das vezes a partir da palavra do agente de segurança, que muitas vezes é a única testemunha.

“O fato de não estipular a quantidade é apenas um dos muitos erros desse artigo, já que ao considerar relevante o local da apreensão e as condições sociais da pessoa autuada, fica bem claro que alguém com ensino superior portando drogas no Leblon vai estar mais distante do perfil de traficante do que o jovem com baixa escolaridade que portar drogas próximo a favela onde mora.” 

Branco é usuário, preto é traficante

O texto aprovado não altera a Lei de Entorpecentes, que já prevê a diferenciação entre traficantes e usuários. Ou seja, teoricamente, o usuário não pode ser criminalizado por ser dependente químico, ficando ainda à cargo da Justiça essa distinção.

No entanto, a máxima “branco é usuário, preto é traficante” não existe por acaso. Um levantamento realizado pela Agência Pública na cidade de São Paulo em 2017, mostra que os negros foram processados por tráfico com menos quantidade de drogas do que os brancos. Os réus brancos foram apreendidos com em média: 85 gramas de maconha, 27 gramas de cocaína e 10,1 gramas de crack. Quando o réu é negro, a medida é inferior nas três substâncias: 65 gramas de maconha, 22 gramas de cocaína e 9,5 gramas de crack.

Jéssica chama atenção para a “falácia de que a PEC 45 tem o objetivo de combater o tráfico de drogas, quando na verdade só está criminalizando e punindo o usuário”. Para a ativista, além de ser inconstitucional, a proposta vulnerabiliza ainda mais uma parcela da população que consome substâncias e já sofre com a falta de políticas que as enxergue como cidadãs. Ela lembra ainda dos impactos de políticas como essas na “guerra às drogas”, na qual jovens negros e periféricos são vitimados por agentes do Estado.

“Drogas são consumidas em todo o mundo, da área mais marginalizada desse país à mais abastada, no entanto, pessoas brancas com alguma estrutura social seguirão sendo usuárias, e pessoas negras e periféricas seguirão sendo encarceradas e encontrando as balas que o Estado insiste em perder nos nossos endereços e corpos.”

Dudu Ribeiro, co-fundador da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, lembra que a PEC 45 diz pouco sobre o debate sobre drogas, e mais sobre a disputa das competências entre os Poderes Legislativo e Judiciário. “Corremos um grande risco de o Estado brasileiro subir alguns degraus no processo de guerras às drogas a partir de uma lógica anticientífica”, avalia.

Dudu Ribeiro, co-fundador da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas – Imagem: Reprodução

Uma das preocupações de Mariana Siracusa, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), é que a PEC altera justamente o artigo 5º da Constituição, que assegura direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros e, por ser uma cláusula pétrea, deveria ser preservada. “Incluir um crime justamente nesse artigo fere direitos à liberdade individual e à privacidade, além de abrir precedente para criminalização de outras condutas.” 

Outra preocupação da pesquisadora, é que a PEC também pode colocar em risco o acesso à cannabis medicinal de milhares de pacientes no Brasil, já que pode tornar inconstitucional as regulamentações da Anvisa sobre o tema. 

Pauta progressista sob ótica conservadora 

O julgamento do Recurso Extraordinário no STF, que provocou a reação do parlamento, foi retomado em agosto de 2023, mas iniciado em 2015. Naquele ano, os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso votaram pela não criminalização do porte de maconha. Mas o julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do então ministro Teori Zavascki, e assim permaneceu nesses últimos sete anos.

O Recurso foi interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em favor de um homem condenado por portar 3g de cannabis sativa para uso pessoal. Quando retomado no ano passado, o ministro Alexandre de Moraes e a então presidente da Corte, ministra Rosa Weber, também votaram pela não criminalização do porte de cannabis. Já os ministros Cristiano Zanin, Nunes Marques e André Mendonça votaram pela criminalização. 

O placar, portanto, está em 5 a 3 pela não criminalização. No dia 6 de março, o julgamento foi pausado mais uma vez pelo pedido de vistas do ministro Dias Toffoli. Não há data definida para a retomada. 

As idas e vindas do processo, observa Támara Silva, ativista da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), revelam o nível de “polêmica” que existe em torno desse debate. Ainda assim, afirma ter expectativa pela descriminalização no STF, e pelo avanço de um debate que proporcione leis de drogas mais justas.

“A descriminalização do porte de drogas ilícitas para uso pessoal, não apenas da maconha, teria grande impacto no nosso sistema carcerário, composto hoje por muitas pessoas que foram presas com pequenas quantidades de substâncias ilícitas para uso pessoal, mas que foram julgadas como traficantes”, analisa.

Támara Silva, ativista da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa) – Imagem: Thiago Paixão

Jessica Souto lembra que, quando a pauta chegou ao STF, o objetivo era discutir a posse de substâncias em geral, não apenas a maconha. “O que mostra que por mais progressista que essa pauta pareça ela ainda está enrijecida e é analisada sob uma ótica conservadora.”

Para Mariana Siracusa, um dos elementos que atrasa o debate sério e responsável sobre o tema, é o quanto ele é permeado por questões de natureza moral e religiosa. “Há muito preconceito e discriminação contra usuários e falta uma perspectiva racional, baseada evidências científicas”. 

Apesar de um placar favorável até aqui no julgamento do STF, Dudu acredita que ainda há pela frente o desafio de convencer os três ministros que ainda não declararam seu voto. Independente do resultado, o ativista reconhece que uma das vitórias da sociedade civil organizada foi influenciar o debate público, evidenciando como a legislação tem impactos desproporcionais do ponto de vista racial. Algo que, afirma, ficou nítido nos votos dos ministros.

“Ninguém precisa que uma substância seja legal para começar a consumir” 

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Dados do Sistema Nacional de Políticas Penais, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública (SENAPPEN/MJSP) indicam que em 2023 havia mais de 850 mil pessoas presas no país. Quase 1/3 deles cumprindo pena por tráfico de drogas. O perfil desse grupo não surpreende: aproximadamente 70% são pessoas negras e 35% têm entre 18 e 29 anos.

Em resposta aos argumentos em defesa da PEC, que defende que a descriminalização das drogas incentivaria o aumento do consumo, impactando a saúde da população e os núcleos familiares, Jessica ressalta que são problemas que já existem e que não podem ser tratados com a criminalização. Por outro lado, explica que, enquanto o mercado segue criminalizado e ilegal, as pessoas continuam consumindo algo que não sabem o que é efetivamente, passíveis assim de desenvolver questões de saúde devido à má qualidade ou mistura do que estão consumindo, e nesses casos, não se sentem seguras para buscar ajuda médica. 

Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) – Imagem: Reprodução CESeC

Mariana soma ainda outra preocupação a esse quadro. Além de ineficaz e responsável pela morte e encarceramento de jovens negros, o enfrentamento bélico às drogas também é caro. O projeto Drogas: Quanto Custa Proibir, desenvolvido pelo CESeC, mostra que, em apenas um ano, os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo gastaram 5,2 bilhões de reais para implementar essa política proibicionista.

“São muitos recursos desperdiçados numa política fracassada, que poderiam ser investidos em saúde, educação, políticas de moradia”, critica.

O Brasil na contramão do mundo

Data de 1830 a primeira medida de criminalização da maconha no Brasil. Na época, o código de posturas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro estabelecia a proibição da venda e do uso do “Pito do Pango”, bem como sua conservação em casas públicas. Segundo documento oficial do Ministério das Relações Exteriores de 1959, a erva teria sido introduzida no país a partir de 1549, pelos negros escravizados e as sementes de cânhamo eram trazidas em bonecas de pano.

A forma como a maconha era consumida pelos negros no Quilombo dos Palmares no século 17, conforme estudos do antropólogo Edison Carneiro, em cachimbos de barro, levou a maconha a ser chamada de “Pito do Pango”.

“Ao longo desses dois séculos, a criminalização das drogas vai ganhando mais volume no sentido de perseguição, subalternização e criminalização de populações”, pontua Dudu. 

Olhando para o cenário internacional, o co-fundador da Iniciativa Negra observa que a política de guerra às drogas adotada nas últimas décadas enfraqueceu democracias, sequestrou o orçamento público, foi direcionada a populações marginalizadas e não conseguiu impactar de forma decisiva no consumo das substâncias tornadas ilícitas. “Há uma rota global na mudança de perspectiva no sentido da descriminalização.”

Rota que já está sendo seguida por diversos países. No dia 1º deste mês de abril, a Alemanha legalizou o consumo recreativo de maconha. A flexibilização já faz parte da realidade de países como Malta, Luxemburgo, Uruguai, Colômbia, Chile, Peru e Estados Unidos.

“O Brasil segue na contramão do mundo. Assim como foi um dos últimos países a implementar a abolição da escravatura, segue perpetuando as formas e práticas de controle a partir da criminalização de pessoas e territórios específicos”, finaliza Jéssica.

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