ONU cobra Brasil sobre a capacidade de garantir o acesso ao aborto legal

Delegação brasileira foi sabatinada por peritas durante a CEDAW. Dados do governo federal mostram que em 2023, mais de 12,5 mil meninas entre 8 e 14 anos foram mães no país.

Por Andressa Franco

Na última quinta-feira (23), o Brasil apresentou o relatório brasileiro sobre a situação das mulheres no Brasil durante a 88ª Sessão da Comissão sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), em Genebra, na Suíça. Na ocasião, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalvez, apresentou para um comitê de 23 peritas internacionais, como está a retomada das políticas públicas em prol das mulheres, após governos anteriores demonstrarem descaso com programas e projetos para essa parcela da população.

A delegação brasileira foi sabatinada pelas peritas, com base nos artigos da Convenção. Entre os questionamentos estavam temas como a violência de gênero e taxas de feminicídio e violência doméstica, baixa representatividade das mulheres na política, direitos sexuais e reprodutivos, exploração e assédio sexual, vulnerabilidade de mulheres migrantes, entre outros.

Era esperado que o país fosse cobrado sobre a capacidade do Estado de garantir o acesso ao aborto legal para as brasileiras. A perita Hilary Gbedemah, por exemplo, quis saber como tem sido a resposta das autoridades para enfrentar a pressão “conservadora” contra a implementação de educação sexual nas escolas. Dados do governo federal mostram que em 2023, mais de 12,5 mil meninas entre 8 e 14 anos foram mães no país. Refletindo a dimensão da violência contra meninas no país

A ministra falou sobre os três casos em que a interrupção da gravidez é permitida no país: gravidez decorrente de estupro, risco de morte à gestante ou em caso de anencefalia do feto. Entre as barreiras para acessar esse direito, Gonçalvez apontou a falta de informação das mulheres sobre seus direitos, escassez de serviços e profissionais capacitados, além de objeção de consciência por parte desses profissionais.

Sobre as medidas tomadas pelo governo, a ministra informou que o governo ampliou o acesso a métodos contraceptivos e sensibilização e estímulo à oferta de planejamento reprodutivo e familiar na Atenção Primária à Saúde

Aborto legal não tem sido garantido e vítimas atravessam sagas para consegui-lo

Apesar de o aborto legal ser permitido e oferecido gratuitamente pelo SUS, o serviço não tem sido garantido no país. O quadro afeta principalmente as mulheres com baixa renda, segundo documentos recebidos pelo Comitê da CEDAW. No documento, organizações destacaram, com base nos dados do DataSUS, que nos últimos 10 anos e 204,4 mil crianças e adolescentes se tornaram mães. Destas, 74,2% eram negras.

Casos de gravidez decorrente de estupro, e de crianças violentadas sexualmente que também engravidaram e sofreram impedimentos para acessar o serviço de aborto legal ganharam grande repercussão no país nos últimos anos. Alguns deles inclusive foram apresentados pela sociedade civil aos peritos da ONU.

No Piauí, por exemplo, uma menina de 12 anos deu à luz em 2023, após ser vítima de estupro e engravidar pela segunda vez. Ela teve o aborto legal negado no estado, e o bebê foi entregue para adoção. A criança ficou grávida pela primeira vez após ser violentada aos 10 anos por um primo de 25 anos em um matagal na zona rural de Teresina (PI) e seguiu com a gestação após a mãe negar o aborto. Um ano depois, mais uma vez, após sucessivos abusos, ela engravidou e teve o segundo bebê.

Em Santa Catarina, em 2022, uma menina de 11 anos foi impedida de realizar o procedimento de interrupção de gestação após ser estuprada. A gestação tinha 22 semanas quando foi descoberta. Depois de o aborto legal ser negado por um hospital em Florianópolis, a garota foi levada a um abrigo, onde foi mantida pela Justiça para evitar que fizesse o aborto autorizado. “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, questionou a Juíza Joana Ribeiro Zimmer na época, em vídeo que teve grande repercussão. A gestação só foi interrompida às vésperas de completar 29 semanas, quando o Ministério Público Federal expediu recomendação para que o Hospital Universitário de Florianópolis realizasse o procedimento.

Em 2020, em meio à pandemia de Covid-19, uma menina de 10 anos engravidou após ser estuprada pelo tio em São Mateus (ES). A vítima era violentada desde os seis anos de idade. O Tribunal de Justiça do Espírito Santo concedeu o direito de interromper a gravidez, mas o hospital procurado pela família na capital capixaba se negou a fazer o procedimento legal com urgência. Ela então precisou viajar até Recife (PE) para realizar o procedimento. Apesar de ser um caso que deveria correr em total sigilo, pela preservação da criança, a vítima precisou passar por mais uma sequência de traumas. A viagem, e até mesmo seu nome, foram divulgados nas redes sociais de conservadores. Na porta do hospital, grupos cristãos esperavam a menina e os médicos do hospital com gritos de “assassinos”.

Esse ano, uma jovem de 29 anos, moradora da periferia de São Paulo, atravessou uma saga para acessar o aborto legal após ser estuprada e descobrir que estava grávida, meses depois da violência. Ela estava com 22 semanas de gestação quando buscou o atendimento. Mas o único hospital da cidade que fazia a interrupção da gravidez em meninas e mulheres com mais de 20 semanas gestacionais, o Vila Nova Cachoeirinha, suspendeu o serviço de aborto legal no fim de 2023.O Ministério da Saúde publicou uma nota técnica dizendo que não deve haver limite temporal para interromper a gravidez nos casos previstos na lei. A Justiça chegou a ordenar que o serviço fosse retomado no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, mas a prefeitura recorreu e conseguiu uma liminar em segunda instância para manter o serviço fechado. A vítima precisou recorrer a uma Organização da Sociedade Civil, o Projeto Vivas, que entrou em contato com os três únicos serviços do país que, de acordo com levantamento da própria ONG, continuam fazendo o procedimento em fase de gestação avançada, localizados em Salvador (BA), Recife (PE) e Uberlândia (MG). Depois de negativas por lotação, foram necessárias muitas ligações para conseguir uma vaga no hospital soteropolitano, e a ONG pagou pela passagem e hospedagem da jovem.

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