Sobre chicotes, fuzis, postes e “gravatas”

A institucionalização da tortura e do genocídio da população negra brasileira

Paulo Victor Melo*

Uma sala “dos fundos” de um estabelecimento comercial. Um chicote na mão. Um jovem negro, de 17 anos, forçado a ficar sem roupa. Os sons do chicote e dos gritos do jovem, abafados por uma mordaça, são apavorantes. Os agressores ainda fizeram questão de alertar que, se desejasse permanecer vivo, o adolescente não poderia denunciar a tortura.

Não, não estou falando de cenas do século XIX nos Estados Unidos, como algumas das retratadas, por exemplo, no filme 12 anos de escravidão, dirigido por Steve McQueen, que ocupou as salas de cinemas do mundo em 2014.

Esta é uma cena de 2019, século XXI, do Brasil, país da insistente ideia fantasiosa de democracia racial. País que se automutila ao afirmar ser um lugar de homens e mulheres cordiais.

Diferente fosse, a tortura praticada por seguranças do supermercado Ricoy, na zona sul de São Paulo, contra um jovem de 17 anos, há cerca de um mês (e tornada pública essa semana), seria algo inédito nessas terras. Mas, citando brevemente outros seis episódios dos últimos anos, ocorridos em várias partes do território nacional, ajudo a lembrar que isso não é verdade.

Abril de 2019. Evaldo dos Santos, também negro, 51 anos, foi morto por agentes do Exército, que dispararam pelo menos 80 tiros de fuzil em direção ao seu carro, na zona norte do Rio de Janeiro.

Fevereiro de 2019. Pedro Henrique, também negro, também jovem, foi assassinado por um segurança do hipermercado Extra, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro.

Junho de 2017.  Adolescente de 17 anos teve a inscrição “Sou ladrão e vacilação” tatuada na testa, por dois homens, além de ter o cabelo cortado e os pés e mãos amarradas, em São Bernardo do Campo.

Julho de 2015. Cleydenilson Pereira Silva, 29 anos, também negro, foi assassinado após ser imobilizado, agredido a socos, pedradas e garrafadas por dezenas de pessoas, no bairro São Cristóvão, em São Luís, no Maranhão.

Fevereiro de 2014. Adolescente de 15 anos, também negro, foi amarrado a um poste, teve as suas roupas arrancadas e uma orelha cortada por um grupo de homens que se autointitularam “vingadores”, no Rio de Janeiro.

Fevereiro de 2012. Leidson Reis, também negro, 38 anos, foi morto dentro do shopping Jardins, após receber uma “gravata” de dois seguranças do estabelecimento, em Aracaju.

Esses são exemplos de que, pelas mãos do Estado, pela ação do mercado ou por iniciativa de uma sociedade pautada cada vez mais no ódio e no racismo – legitimado e reforçado também pela ação estatal e pelo discurso de parcela da mídia brasileira –, a população negra é, cotidianamente, alvo prioritário de torturas e execuções.

Divulgada em junho deste ano, a mais recente edição do Atlas da Violência (estudo elaborado pelo IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública), que cataloga e categoriza a violência letal no Brasil, apontou, conforme consta no relatório, “a continuidade do processo de aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil”.

Em 2017, de acordo com o Atlas, 75,5% das vítimas de homicídios no Brasil foram pessoas negras, sendo que a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, enquanto o índice de não-negros foi de 16,0. Em outros termos, considerando o percentual populacional, para cada indivíduo não-negro que sofreu homicídio no ano da pesquisa, 2,7 negros, em média, foram mortos.

O Atlas demonstra também que no período de uma década, entre 2007 e 2017, a taxa de negros assassinados cresceu 33,1%, enquanto a de não-negros cresceu 3,3%. Ainda conforme o Atlas, em comparação com o ano anterior, em 2017 houve uma redução de 0,3% no homicídio de não-negros, enquanto o de negros cresceu 7,2%.

Se o Atlas da Violência não deixa dúvidas que negros e negras são as vítimas principais da violência, dados da Pesquisa Nacional de por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, referente ao ano de 2018, escancaram também uma profunda desigualdade racial no que diz respeito ao acesso à educação: 55,8% dos homens negros e 33% das mulheres negras entre 19 e 24 anos não concluíram o ensino médio; 25,5% dos adolescentes negros com idade entre 15 e 17 anos não terminaram o ensino fundamental; 19,9% dos jovens negros na faixa etária de 19 a 24 anos não concluíram o ensino fundamental; 65,7% dos estudantes da Educação de Jovens e Adultos do ensino médio são negros.

Os números do Atlas e da PNAD, que são partes da mesma estrutura de desigualdade do país, servem para evidenciar que com chicotadas, com tiros de fuzil, amarrando a postes ou dando “gravatas” e negando o direito à educação, o país que tenta se esconder sob a ilusória cortina discursiva da democracia racial é, em verdade, um ambiente de institucionalização da tortura e do genocídio da população negra.

 

Imagem de destaque: Protesto organizado pelo Movimento Negro no ultimo sábado (07) em Frente ao Supermercado Ricoy em São Paulo, onde o novem negro foi torturado Foto: Brasil de Fato

*Paulo Victor Melo, jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, professor de Comunicação, integrante do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

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