Por Patrícia Rosa
O Brasil não é um país fácil e acolhedor para pessoas trans e travestis. A transfobia impacta, dentre outros aspectos da vida, a educação de crianças e adolescentes trans. Segundo dados da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, um total de 82% das pessoas trans estava fora do ambiente escolar entre as idades de 14 e 18 anos, no ano de 2017. O acesso à educação manteve-se restrito e excludente ao longo dos anos, informações de 2022 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) indicam que 70% da comunidade não completou o ensino médio e que apenas 0,02% conseguiram ingressar no ensino superior.
Bruno Santana, 36 anos, é transativista e pós-graduado em Gênero, Diversidade e Direitos Humanos pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e mestrando em educação pela UFBA, observa que a evasão escolar não é uma escolha individual, mas sim uma consequência das violências sofridas no ambiente escolar contra pessoas trans e travestis.
“Eu tiro esse lugar da evasão, porque é como se a pessoa saísse, é um movimento de culpabilizar a vítima. Não, ela foi violentada a tal ponto e foi convidada a se retirar. Ela foi expulsa daquele espaço. Ela não teve a oportunidade de permanecer naquele espaço que precisa ser um espaço de equidade”, reflete o educador, que durante o seu ciclo educacional também vivenciou a falta de acolhimento.
“Eu era visto como estranho, aberração e isso era algo muito naturalizado dentro da escola. Eu fui perseguido principalmente pelos meninos, que corriam atrás de mim para me bater. Eu era chamado de diversos nomes, tinha esse lugar também de ser o moleque macho. Esses nomes são naturalizados dentro da escola, e é deixado de lado”, desabafa Bruno, salientando que existe uma falta de proposta pedagógica para combater essas violências.
No Dossiê: Registro Nacional de Assassinatos e Violações de Direitos Humanos das Pessoas Trans no Brasil, que coletou e analisou 96 casos de violações de direitos humanos em 2022, a escola aparece como o segundo local onde essas violações ocorrem com maior frequência.
“O sistema educacional é projetado e arquitetado para limitar, excluir e impedir que corpos dissidentes usufruam desse espaço. Se você intercala escola, dissidência, gênero, sexualidade, você vai ter transfobia, LGBTfobia, racismo, o capacitismo. Qualquer corpo dissidente que vive na escola dentro desse processo que se alimenta de desigualdade, vai sofrer violência”, explica Bruno Santana.
Transfobia em diferentes temporalidades e contextos escolares
A transfobia no contexto escolar é vivida de forma marcante pela gestora da rede estadual de São Paulo, Paula Beatriz de Souza, uma mulher trans negra de 54 anos. Desde o início do ensino fundamental II, aos 11 anos, ela já enfrentava violências por parte do corpo escolar. “Eram oito professores, cada um com uma norma, e os colegas começaram a me hostilizar com um tratamento claramente transfóbico. Hoje eu consigo identificar isso como transfobia, mas, na época, eu não tinha compreensão do que era”, relata a educadora.
Orientações sexuais “dissidentes” eram consideradas doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) até 1990, e Paula foi estudante nesse período. Naquela época, sua mãe trabalhava como merendeira na mesma instituição onde ela estudava, quando um professor a aconselhou a levá-la ao médico, por considerar que teria “problemas”.
Na época, a garota foi levada ao psicólogo e também ao psiquiatra, que prescreveram o tratamento com uso de medicamentos. “Minha mãe observou que o meu comportamento, tanto escolar quanto social, estava modificando. Aí é onde eu estava começando a ter o real transtorno, estava começando a ter problemas mentais.”
Com orgulho, ela recorda a importância da mãe na interrupção do tratamento e no apoio à sua identificação de gênero. “Eu lembro da minha mãe pegando os remédios, jogando no vaso sanitário e dando descarga. Cada remédio que ela jogava, ela dizia, ‘vai ser bicha, vai ser bicha, vai ser viado, vai ser viado, vai ser travesti, vai ser travesti, mas filho louco, eu não vou ter’”, recordou Paula.
O apoio familiar é fundamental para que as pessoas trans possam se desenvolver e enfrentar o contexto de transfobia presente em diversos ambientes. Jonas Abel, de 16 anos, é estudante do 2º ano do ensino médio do Instituto Federal da Paraíba (IFPA). O jovem, que sempre teve o apoio da família com relação a sua identidade de gênero e para garantia de direitos básicos, se assumiu para a escola ainda no ensino fundamental.
“Isso se dá principalmente pelo fato de minha mãe ser uma pessoa que já trabalha com ativismo e eu ter crescido em um ambiente muito favorável para o meu desenvolvimento, e muito seguro para que eu questionasse minha própria identidade de gênero”. O suporte não impediu o jovem de enfrentar situações transfóbicas no ambiente escolar, mas o estimulou a reivindicar e brigar por seus direitos. Ele conta que, em uma aula, um professor se referiu a ele usando o pronome feminino. O jovem e seus colegas o alertaram, porém foram ignorados pelo profissional.
“Quando ele fez a terceira vez eu o corrigi, eu tive que falar mais quatro vezes, e falei com mais firmeza na frente da sala, o interrompi e falei que ‘meus pronomes são ele e dele, eu não sou uma menina, sou um homem”, relatou o adolescente.
Diante da situação, a mãe de Jonas Abel, Karine Oliveira, buscou a direção da escola e solicitou a abertura de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra o professor. Ela explicou que, embora tenha recebido um tratamento receptivo por parte da gestão do Campus onde seu filho estuda, o mesmo não ocorreu no setor administrativo do instituto. “Passaram-se cerca de seis meses apenas para autorizar a abertura da comissão responsável por levar o PAD adiante. Depois, foram necessários mais meses até que a comissão me chamasse para conversar”, relatou Karine.
Karine relatou que a comissão a informou que não entraria com o processo e que faria um termo de ajustamento de forma compartilhada. “Infelizmente, a estrutura interna não colaborou e eu vou tomar novas providências”. Com a falta de resolução por parte da instituição, a mãe do garoto registrou um boletim de ocorrência para dar andamento ao caso.
A busca ativa e o acesso dos corpos trans e travestis
Uma das estratégias usadas pelas secretarias de educação ao redor do Brasil, como ferramenta que visa identificar alunos que estão em situação ou em risco de evasão ou que já estão fora do ambiente escolar, é a Busca Ativa Escolar (BAE). A ferramenta está prevista na Constituição Federal desde 1996, por meio da Lei nº 9.394, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Para cumprir a busca, os estados e municípios devem desenvolver ações para manter a base de contatos e realizar o mapeamento dos alunos que não estão matriculados nas escolas ou que não finalizaram regularmente o ano letivo. Com isso, as famílias e os estudantes são contactados, com o objetivo de entender o motivo para a falta de regularidade escolar.
“A escola, no seu projeto político-pedagógico, deve garantir que esse tema esteja contemplado: falar sobre a diversidade, sobre acolhimento. Recentemente, fiz um questionamento sobre a busca ativa: procuram as alunas travestis e transexuais, os alunos transexuais, quando eles deixam de frequentar a escola? Eu acredito que não”, declarou Paula Beatriz.
A educadora foi a primeira gestora trans de uma escola pública do estado de São Paulo e enfatiza a importância de que esse feito se perpetue em outros educadores trans que ocupem as escolas brasileiras. “Impactará bastante, com a presença de mais. Em 2013 eu fui anunciada pela Secretaria da Educação como a primeira diretora trans, estamos em 2024, e não vieram outras”. A gestora reforça a necessidade da permanência da política educacional para a população trans e LGBTQIA+, independente do governo.
“Existe a política educacional, mas ela não é efetiva, pois há momentos que um governo trata da questão da diversidade, da identidade de gênero, orientação sexual e em outros, um silêncio total”, ressalta Paula.
O professor Bruno finaliza ressaltando que, embora o acesso de pessoas trans à educação viva uma realidade de retrocesso, a educação é a ferramenta de luta no avanço do acesso a direitos.
“Eu me torno um professor, uma figura que é a representatividade dentro desse processo. Então isso não seria possível se não fosse a educação, se não fosse as alianças afetivas dentro desse processo. A educação é essa flecha certeira, que se a gente consegue direcionar ela, ela vai abrir porta, abrir janela, trazer essa diversidade para dentro da escola.”