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Dois anos do assassinato de Mãe Bernadete: família cobra justiça e denuncia impunidade

Colagem: Karla Souza

Por Catiane Pereira

Maria Bernadete Pacífico Moreira, conhecida Mãe Bernadete, foi assassinada aos 72 anos, dentro de casa, no Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA), no dia 17 de agosto de 2023. Ela era uma das mais importantes lideranças quilombolas do país, coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e ex-secretária de Promoção da Igualdade Racial do município. Sua morte expôs mais uma vez a vulnerabilidade e a falta de proteção às lideranças negras e defensoras de direitos humanos no Brasil.

Dois anos depois, o crime segue sem resposta plena sobre os mandantes e julgamento dos acusados de envolvimento no crime. “Houve identificações e prisões de alguns envolvidos, mas o caso continua sem resposta sobre os mandantes. Quem mandou matar Mãe Bernadete? Quem mandou matar Binho do Quilombo?”, questiona Jurandir Wellington Pacífico, filho da líder quilombola. Ele faz referência também ao assassinato do irmão, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, conhecido como Binho do Quilombo, morto em 19 de setembro de 2017, também dentro da comunidade.

Jurandir Wellington Pacífico, filho de Mãe Bernadete – Imagem: Reprodução

Em 2023, a Polícia Civil da Bahia concluiu que a execução de Mãe Bernadete estaria ligada à atuação de facções criminosas na região. A família contesta. Para Jurandir, a morte da mãe e do irmão está relacionada a disputas territoriais e a um empreendimento “danoso” que foi implantado na redondeza da comunidade, sustentando que a versão oficial serve para preservar os verdadeiros mandantes. “O sistema é cruel. Empresários e políticos poderosos estão por trás dessas mortes. Por que não prenderam ainda os chefões que mandaram matar?”, afirma.

Apesar da dor, a família e a comunidade tentam transformar o luto em luta. “A memória de Mãe Bernadete é força mobilizadora. Ela se tornou referência para outras lideranças, especialmente mulheres e jovens quilombolas, fortalecendo a união interna e mantendo viva a luta pelo território, pelos saberes ancestrais e pelos direitos quilombolas”, diz Jurandir.

Assassinato de Mãe Bernadete

Segundo o processo, Mãe Bernadete foi alvejada com mais de 20 disparos. Os netos estavam na casa no momento da invasão e foram retirados da sala antes da execução. Após o assassinato, os criminosos levaram os celulares da vítima e das testemunhas. Sem telefone, o neto mais velho, Wellington Gabriel, usou o computador para pedir socorro.

 Casa de Mãe Bernadete, onde ela foi executada – Imagem: Janaína Nery

Em novembro de 2023, a Polícia Civil concluiu que a motivação foi o fato da liderança ser contrária à presença do tráfico na região. A família discorda e afirma que Mãe Bernadete era alvo de constantes ameaças de madeireiros por denunciar a extração ilegal de madeira em área de proteção ambiental. Meses antes de morrer, a própria Bernadete relatou, em reunião com a então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, que vinha sendo ameaçada por “fazendeiros da região”.

Jurandir reforça que a versão oficial não contempla a realidade dos fatos. “Eu discordo plenamente, está faltando peça no tabuleiro desse xadrez. Minha mãe não tinha nenhum problema com o tráfico. O tráfico foi pago para executá-la. Caso desse problema, como deu, a conta cairia no tráfico — como caiu. Foi tudo pensado antes”, declarou Jurandir em entrevista à Afirmativa em 2024.  

Na época do crime, Mãe Bernadete integrava o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), mantido pelo governo federal, executado na Bahia pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SJDH-BA) e gerido pelo IDEAS – Assessoria Popular. Mas, segundo a investigação, pelo menos três câmeras que deveriam monitorar sua residência estavam quebradas e não haviam sido substituídas. Além disso, as rondas policiais ocorriam sempre no mesmo horário, o que, para familiares, facilitou a ação dos assassinos.

“O programa tem falhas e não estava preparado para atender às demandas das lideranças quilombolas na Bahia. No momento do crime, não havia proteção presencial nem preventiva suficiente para impedir a ação dos assassinos”, critica Jurandir.

O que se sabe sobre os acusados pela morte de Mãe Bernadete

Dois anos após o assassinato de Mãe Bernadete, seis pessoas foram identificadas como envolvidas no crime — dois executores, dois mandantes e dois colaboradores que teriam repassado informações para facilitar a ação. Três foram presos ainda em 2023, e a captura mais recente, em julho de 2024, foi de Ydney Carlos dos Santos de Jesus, apontado como gerente do tráfico na região e subordinado de Marílio dos Santos, considerado o líder do grupo.

Marílio e Josevan Dionísio dos Santos, identificado como um dos executores, seguem foragidos. Outro acusado, Carlos Conceição Santiago, foi denunciado por armazenar as armas usadas no crime e já foi condenado por posse ilegal de armamento.

Mãe Bernadete – Imagem: Reprodução/ Redes Sociais

Apesar de avanços pontuais, a demora na responsabilização completa dos envolvidos alimenta a indignação da família. “Houve prisões, mas onde estão os mandantes? Quem deu a ordem ainda está solto”, cobra Jurandir.

Três acusados, Arielson da Conceição Santos, Marílio dos Santos e Sérgio Ferreira de Jesus, foram enviados a júri popular pela 1ª Vara Crime de Simões Filho, sob acusação de homicídio qualificado, cometido por motivo torpe, de forma cruel, sem chance de defesa e para assegurar a execução. Apesar de estar foragido, Marílio tem advogado constituído que o representa no processo.

Em junho deste ano, a Justiça concedeu liberdade a um dos acusados de envolvimento no assassinato, fato que levou a Conaq a divulgar uma nota de repúdio. O nome do beneficiado, no entanto, não foi tornado público.

Procurado pela Afirmativa, o Ministério Público da Bahia (MP-BA) afirmou que os casos são acompanhados por procuradores específicos e que “dados e relatos são cuidadosamente avaliados e acompanhados por equipe especializada”. A instituição, contudo, não forneceu detalhes, alegando “priorizar a proteção e segurança das comunidades”.

Primeiro atentado contra os líderes da família Pacífico

As ameaças ao território e à segurança dos moradores do Quilombo Pitanga dos Palmares não são novas. Aos 36 anos, o filho de Mãe Bernadete, Binho do Quilombo, foi assassinado em 19 de setembro de 2017, dentro da comunidade. Ele era um ativista pelos direitos humanos e quilombolas, e atuava contra a instalação de um aterro sanitário pela empresa Naturalle nas proximidades do território. Dois homens, tio e sobrinho, foram presos como suspeitos, mas seus nomes não foram divulgados.

“Já fui ameaçado várias vezes de ser o próximo. Existem indícios de ligação entre os crimes, seguiremos exigindo justiça integral pelos dois”, ressalta Jurandir.

Proteção de ativistas quilombolas segue ameaçada

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 68,19% dos quilombolas do país residem no Nordeste. A Bahia concentra 29,90% desta população e o Maranhão vem a seguir, com 20,26%. Além disso, de acordo com a Conaq, pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas no Brasil na última década. A Bahia lidera com 11 casos, seguida por Maranhão (10) e Pará (4).

“Mãe Bernadete emprestou uma biografia ao que muitas vezes tratamos apenas como números. Esses números têm rosto, trajetória e atuação no território”, afirmou Wagner Moreira, coordenador do IDEAS – Assessoria Popular, entidade conveniada à SJDH-BA  e responsável pela gestão do PPDDH-BA, que acompanhava a líder. Segundo ele, além de defasado no orçamento, o programa carece de atualização estratégica diante das novas dinâmicas de violência no país.

A Política Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PNPDDH) foi criada em 2007 e o PPDDH, em 2019. Estruturado para ser multilateral, com participação de governo federal, estados e sociedade civil, o programa acumula avanços, mas segue com limitações graves. Estudo da Terra de Direitos indica que, no ritmo atual, a titulação de todos os territórios quilombolas levará 2.188 anos.

Para José Maximino da Silva, coordenador nacional da Conaq, o modelo atual não garante segurança territorial coletiva nem integra perspectiva de gênero e racial na proteção. Ele também aponta dificuldades de acesso, comunicação precária, ausência de diálogo e medidas pouco efetivas, como câmeras sem monitoramento e rondas policiais superficiais.

Jurandir, filho da líder quilombola, defende mudanças urgentes: “É preciso fortalecer o programa, adaptá-lo à realidade das comunidades quilombolas, garantir recursos, agilidade e participação das próprias comunidades na definição das estratégias. Além disso, precisamos regulamentar as terras quilombolas. Terra titulada é como um colete à prova de bala para as lideranças deste país”, afirma. 

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