Viagem marcou o primeiro encontro presencial das organizações de mulheres negras da América Latina apoiadas no programa piloto do VidaAfrolatina Found, entre elas a Revista Afirmativa
Por Andressa Franco e Daiane Oliveira
Imagem: Patricia Ovando
A Universidade de Harvard recebeu professores, estudantes, pesquisadores, ativistas, artistas e formuladores de políticas que trabalham com a agenda da população negra da América Latina, para o Segundo Encontro Continental de Estudos Afro-Latino-Americanos (ALARI). O evento aconteceu entre os dias 7 a 9 de dezembro, em Boston, nos Estados Unidos, com o objetivo de promover o campo acadêmico dos estudos afro-latino-americanos, além de fomentar o diálogo entre atores envolvidos com as agendas de justiça acadêmica e racial na América Latina.
O Fundo VidaAfrolatina, um fundo internacional emergente que mobiliza recursos e os conecta com organizações de mulheres negras e afrodescendentes na América Latina que lidam com a violência sexual, esteve presente com as quatro organizações de seu ciclo piloto de apoios: Revista Afirmativa, do Brasil; AfroPoderosas, do México; Coletivo Ilè; de Porto Rico; e La Comadre, da Colômbia.
A fundadora e diretora executiva do VidaAfrolatina, Lori Robinson, explica que o Fundo é novo e conta com recursos limitados, e por este motivo parecia improvável reunir as organizações apoiadas presencialmente tão cedo. Essa oportunidade, em parceria com Havard, contribuiu ainda mais para o fortalecimento das quatro organizações apoiadas, e do trabalho de Vida Afrolatina. “Foi a primeira vez que nossas consultoras e parceiras beneficiárias se encontrassem pessoalmente”, lembra Lori Robinson.
Para Doreen Dankerlui, voluntária de Vida Afrolatina, e autora do artigo “VidaAfrolatina: supporting afrodescendent in Latin America in the struggle against sexual violence”, é muito importante que o campo acadêmico, especialmente a área emergente dos estudos afro-latino-americanos, olhe para o movimento das mulheres negras. A excelência do artigo de Doreen que estimulou Havard a apoiar a ida das ativistas apoiadas por Vida Afrolatina ao Encontro. Ela destaca ainda que acredita que poderia haver mais foco na violência sexual e de gênero dentro do campo, “já que é uma questão de saúde pública de imensas proporções em toda a região, especialmente no contexto do conflito armado”.
O aumento de pesquisas sobre o tema poderia gerar mais dados e evidências a respeito da gravidade da questão. Além de ser importante ferramenta para buscar junto aos formuladores de políticas públicas estratégias para aumentar a proteção para as mulheres, defende a pesquisadora.
Representando a Afirmativa no encontro, a editora chefe da Revista, Alane Reis, ressalta a importância das alianças entre a universidade e os movimentos sociais no desafio e no compromisso da justiça social.
“É muito interessante ver um espaço como Harvard, que é o berço da academia colonial, localizada em Boston, uma cidade com uma história muito pesada de escravismo e colonialismo, se transformar em um espaço de encontro de pesquisadores e ativistas negros de toda a América Latina”, analisa Alane Reis, que é jornalista e mestre em Comunicação e Memória.
Para Maya Doig-Acuña, doutoranda na Universidade de Harvard e membro da sessão Diáspora da Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribenhas y de la Diáspora, o encontro foi uma oportunidade especial de se conectar com colegas na mesma área de estudo e pessoas que trazem outras experiências da América Latina.
“Particularmente, mulheres negras, pessoas negras, não binárias da América Latina, em um ambiente institucional onde nosso conhecimento tipicamente não é centrado ou valorizado. Nós ganhamos tanto quando trocamos nossas experiências de uma forma transnacional ”, explica.
Movimento de mulheres afrolatinas e ALARI
Entre os tópicos abordados pelos painéis da Conferência, estavam: Gênero e feminismos na América Latina; Movimentos negros, mobilizações negras, representação política; Escravidão e tráfico de pessoas escravizadas; Religiões afro-latino-americanas; entre outros.
Para Dankerlui, além dos conhecidos desafios para as mulheres negras na região (pobreza, sexismo e misoginia, racismo, violência, disparidades de saúde), um desafio a se considerar é a “expectativa das mulheres de manter tudo funcionando – o fardo das mulheres negras fortes”.
Uma das riquezas do ALARI, relata Alane Reis, foi a presença de mulheres negras como maioria na Conferência. E ainda, cerca de 40% dos pesquisadores presentes eram brasileiros, fundamentalmente mulheres. “Foi muito rico, e eu agradeço muito à parceria com o VidaAfrolatina Found pela oportunidade de apresentar o trabalho que fazemos na Revista Afirmativa.”
Luz Marina Becerra, representante de La Comadre, da Colombia, também lembra que foi uma experiência enriquecedora e reforça o fortalecimento das trocas. “Permite fortalecer nossos esforços, laços de solidariedade, visualizando-nos como uma forte rede de mulheres afro-latino-americanas do continente, para combater o racismo, as diferentes formas de violência que atingem as mulheres negras e alcançar o gozo efetivo de nossos direitos e dignidade.”
A experiência que vem pela troca também foi um destaque para a advogada e articuladora política afro-mexicana Mijane Jimenez. A ativista aponta que “também é importante que a academia documente o que é feito em outros territórios”.
Para Angellie González Jorge, representante do Coletivo Ilé, a relação com a VidaAfrolatina foi benéfica para ampliar a perspectiva e “gerar conversas sobre as experiências de violência sofridas por mulheres negras e pobres, cocriar espaços para afrossanação e dirigir uma campanha de mídia para aumentar a conscientização sobre o acesso as barreiras aos serviços e a forma desproporcional com que mulheres/mulheres negras em todas as suas diversidades carregam a violência.”
Imersão no ativismo de Mulheres Negras em Boston
A viagem não se limitou ao espaço acadêmico de Harvard. A coordenadora da sessão Diáspora da Rede Afro Latina Americana e Caribenha de Mulheres Negras, Yvete Modestin, conduziu Alane Reis e Mijane Jimenez, que compõem a Rede nas sessões Brasil e Centro América – respectivamente, para uma experiência de imersão ao movimento social de mulheres negras de Boston.
“Foi muito bom ver ao vivo o que a gente já sabe: a potência do trabalho que as mulheres negras têm feito em todos os lugares do mundo, e conhecer um pouco da história da resistência negra em Boston, uma das primeiras províncias dos Estados Unidos no período colonial”, pontua Alane.
Entre os pontos de visita: a organização comunitária City Life/Vida Urbana, que luta contra o desalojamento e promove desenvolvimento de líderes comunitários; a casa de Malcom X, localizada no bairro Roxbury; além do monumento de Harriet Tubman, abolicionista e ativista americana que resgatou cerca de 300 pessoas escravizadas.
“O movimento tem uma reverência muito grande à casa de Malcom X, mas é preciso apoio para que não desabe”, explica Alane. Nossa editora conta que se aproximou da história de Malcom X e dos Panteras Negras, desde que passou a se inserir no movimento negro, ainda adolescente. “Foi muito forte e importante ter ido lá, que é uma casa histórica para o movimento negro do mundo, localizada em um bairro de periferia, de maioria negra. É triste saber que a casa corre o risco de ser demolida, e todo o bairro demonstra a ausência e descaso do Estado, inclusive com a memória negra.”
VidaAfrolatina e Revista Afirmativa
A Revista Afirmativa fez parte do time composto por quatro organizações negras feministas da América Latina, apoiadas no programa piloto do VidaAfrolatina ao longo de 2021. O projeto apoiado culminou na série de conteúdos Ebó por cura e justiça: Narrativas de Mulheres Negras sobre violências sexuais. “Apresentar o trabalho da Afirmativa em Harvard foi um momento importante para mostrar a luta das mulheres negras brasileiras em torno de narrativas que garantam nossos direitos e dignidade”, comenta Alane.
Em 2003, a criadora do Fundo, Lori Robinson, publicou o livro “I Will Survive: The African-American Guide to Healing from Sexual Assault and Abuse”, onde orienta os leitores pelas maneiras pelas quais sobreviventes de violência sexual, assim como ela, podem alcançar a cura emocional, física, sexual e espiritual. A diretora executiva examina a questão da agressão sexual nas comunidades afro-americanas, e discute porque as mulheres negras são mais propensas do que as brancas a sofrer crimes sexuais, além de trazer na obra a educação sexual para crianças e adultos.
Além dessa experiência, Robinson relata que anos de vivência como jornalista viajando pela América Latina produzindo reportagens sobre comunidades negras, e estudar espanhol no exterior, foram as outras motivações para criar o fundo. “Acredito que é imperativo que a diáspora africana, em todas as Américas, trabalhe em conjunto para enfrentar a violência e outros problemas resultantes do racismo sistêmico, incluindo o impacto desproporcional da violência de gênero.”
Alane Reis destaca que o Fundo é comprometido com a tentativa real de codesign de um modelo de filantropia negra, feminista, com foco na América Latina e no Caribe. “Algo extremamente desafiador, mas igualmente enriquecedor e revolucionário.”
No próximo mês, o VidaAfrolatina Found irá distribuir doações a 17 organizações de mulheres negras parceiras no segundo ciclo de doações. A pretensão é arrecadar mais fundos para que seja possível continuar a aumentar o número de doações para organizações lideradas por mulheres negras na América Latina. Depois da experiência com a série “Ebó de cura e justiça”, a Afirmativa também integra o segundo ciclo de apoio do VidaAfrolatina Found, por meio do qual desenvolverá um novo projeto a respeito do tema.
“Agora é pensar como a Afirmativa enquanto coletivo, agência de comunicação e organização de mídia negra fundamentalmente, seguirá produzindo jornalismo comprometido com as narrativas de enfrentamento às violências sexuais como um todo, mas principalmente contra meninas e mulheres negras”, finaliza Alane Reis.