Pescador de Boipeba (BA) sofre ameaças por denunciar complexo hoteleiro com fortes impactos socioambientais para a região

Raimundo Siri conta como começaram as ameaças e denuncia a ausência de políticas públicas na região como um dos fatores para cooptação de moradores por projetos imobiliário

Raimundo Siri conta como começaram as ameaças e denuncia a ausência de políticas públicas na região como um dos fatores para cooptação de moradores por projetos imobiliário

Por Andressa Franco

Imagem: Marcus Musse

Em abril deste ano, a Afirmativa denunciou a tentativa de construção do complexo hoteleiro Ponta dos Castelhanos, na Ilha de Boipeba, Baixo Sul da Bahia. Uma empreitada antiga, recheada de fragilidades jurídicas e com forte impacto socioambiental. Desde o dia 7 de abril a obra está suspensa, após a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) acatar pedido do Ministério Público Federal. O prazo inicial foi de 90 dias.

Na época, pelo menos dois moradores preferiram não se identificar, com medo de retaliações. No dia 7 de abril, Raimundo Esmeraldino, pescador artesanal e uma das principais vozes contra o empreendimento, deixou a comunidade de Cova da Onça, onde nasceu e foi criado, e uma das áreas mais afetadas pelo empreendimento.

Numa saída durante a madrugada, longe dos olhares dos vizinhos e demais moradores, Raimundo foi embora devido às ameaças que têm recebido pelo seu posicionamento contra a obra.

A empresa responsável pelo resort é a Mangaba Cultivo de Coco LTDA, formada por nomes poderosos como José Roberto Marinho, dono da Rede Globo, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, e mais quatro sócios: Clóvis Macedo, Marcelo Stallone, Antonio Carlos de Freitas Valle e Arthur Baer Bahia.

Tentativa de construção de resort em Boipeba (BA) é antiga, recheada de fragilidades jurídicas e terá forte impacto socioambientalImagem: BoipebaTur

Por meio de mensagens de texto, áudios e vídeos em grupos de WhatsApp dos moradores da ilha, a liderança tem sido ameaçada de morte.

“Temos que pegar esse descarado aqui, em cima da ponte, rapaz. Você é um canalha, um cachorro. […] Quando ele chegar aqui, [vou] jogar ele da ponte de baixo, porque ele não quer o bem da comunidade não. Esse canalha”, diz uma das gravações.

“Ele tem que se ligar que a maioria não aguenta nem mais ouvir a voz dele. A voz dele aqui hoje é um nojo. A voz dele aqui hoje em São Sebastião ou Cova da Onça é um nojo. Esse é um canalhocrata. Tem que empurrar ele da ponte de baixo”, ameaça outro áudio.

“Você procurou uma briga grande contra a comunidade. A comunidade hoje é toda contra você”, ouve-se em outro trecho, gravado pelo mesmo autor.

Uma das ameaças mais explícitas foram dois vídeos que mostram um pequeno siri em uma churrasqueira, junto a carnes sendo assadas na brasa. “Hoje é dia de churrasco e seu sirigueijo está aqui na churrasqueira”, diz uma mulher, sem mostrar o rosto, no primeiro vídeo. No segundo, um homem, também sem o rosto à mostra, aponta a faca diretamente para o siri. “Aqui, óh. Depois de um dia de carne, vamos botar o sirigueijo para assar na churrasqueira. Vamos comer siri assado na brasa. Quebrar as pernas do siri.”

Outra gravação expressa a preocupação com o futuro da comunidade, relacionando a obra à uma possível solução. “Tem muito menino novo estudando para arrumar emprego… Eu não quero meu filho tirando caranguejo ou armando ratoeira. Isso é vida de ninguém.”

Também houveram diversos ataques por mensagens escritas em um grupo de WhatsApp chamado “Informação Projeto Castelhano”. Um dos integrantes do grupo é o arquiteto Manoel Altivo, um “ativista” do projeto da Ponta dos Castelhanos. Ele já esteve em palestras em Boipeba e participou da audiência pública na Assembleia Legislativa da Bahia para divulgar o resort.

Ele afirma não possuir qualquer tipo vínculo empregatício com a Mangaba. Altivo lidera o comitê “Cairu 2030”, organizado pela sociedade civil e a prefeitura para “desenvolver” a cidade. Ao Intercept, relatou que, recentemente, não tem acompanhado o grupo.

“Esse grupo do WhatsApp foi criado por dois amigos de Boipeba no sentido de gerar esclarecimentos [aos moradores] antes da reunião com as Defensorias. Agora, deve ter tido algumas mensagens contra Siri, mas isso porque o nível de indignação contra ele lá [em Cova da Onça], aliás, não só lá, como em muitos lugares, é alto”, disse. Altivo conta que chegou a ouvir alguns dos áudios que circularam no grupo.

A Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado já estão cientes das ameaças. Em nota ao Intercept, a empresa Mangaba afirmou desconhecer os fatos relatados, e que “repudia todo e qualquer tipo de violência”.

Em entrevista para a Afirmativa, Siri conta como começaram as ameaças. O pescador também denuncia a ausência de políticas públicas na região como um dos fatores que motiva os moradores da comunidade a acreditarem nas promessas dos grandes projetos imobiliários como oportunidades para melhoria de vida.

Raimundo Siri em reunião na Comunidade – Imagem: Tunísia Cores

Revista Afirmativa: Quando as ameaças tiveram início?

Raimundo Siri: Desde 2014. Mas eu não entendia ainda como ameaça física. Só agora que a situação se intensificou eu vim entender. Em 2021, eu estava participando de uma reunião no conselho da Área de Proteção Ambiental, no qual sou conselheiro. Ali eu já dizia que a empresa Mangaba Cultivo de Coco estava com jagunços armados para inibir as pessoas a plantar suas pequenas roças ou o acesso à trilha do turismo ecológico. Manoel Altivo participou da reunião, gravou a minha fala e distribuiu nos grupos de WhatsApp para provocar a ira contra mim dentro da comunidade. Antes disso, em 2018, a ilha foi visitada por um grupo de estudantes da UFBA acompanhado de um professor para realizar um trabalho de cartografia na região. Eu alertei que seria necessário ter comunicado a comunidade, e o professor desistiu. Manoel Altivo estava com ele e me acusou de me portar como se fosse “dono de Cova da Onça”, e que eu “pagaria muito caro por isso”. Mas ele não aparece, só fica atrás das cortinas. Ele incita, não faz, mas manda.

R.A.: Quando as ameaças se intensificaram?

R.S.: Agora [desde a suspensão da obra do complexo hoteleiro Ponta dos Castelhanos, no dia 7 de abril], e é um grupo de pessoas que passam por mim, a gente se cumprimenta. Eu vejo que estão sendo alimentados pelo ódio. E quem está implementando esse ódio é justamente esse cidadão [Manoel Altivo]. Juntamente com esse grupo de políticos, empresários, funcionários do estado [interessados no complexo hoteleiro]. No grupo de WhatsApp fazem críticas à Defensoria Pública, ao Conselho Pastoral dos Pescadores. Vão falando essas coisas sem o mínimo de responsabilidade. Eu conheço todos eles. Uma mãe ligou pra mim dizendo que tinha brigado com o filho porque ele falou aquelas coisas no grupo. É um pescador, jovem, tem potencial, mas está sendo alimentado pelo ódio.

R.A.: Por que o senhor não registrou um Boletim de Ocorrência?

R.S.: Fiz uma avaliação com os companheiros e companheiras aqui da comunidade e decidimos que seria melhor não fazer.

R.A.: Por que o senhor acredita que parte da comunidade foi cooptada pela proposta do empreendimento?

R.S.: Os verdadeiros interessados nesse empreendimento não estão na comunidade. Ali são pessoas alimentadas, cooptadas e ludibriadas por essa conversa de desenvolvimento, de que todo mundo vai ficar bem, trabalhar e ganhar dinheiro. Eles estão esperando as pessoas se matarem pra eles se apropriarem do espaço. É um pessoal rico que só quer ficar mais rico à custa da miséria dos outros. Essas pessoas estão sendo cooptadas não só pela promessa de emprego, mas de que a vida vai melhorar. Destaco as falas irresponsáveis do presidente da Colônia de Pescadores e superintendente de pesca do município, Aurelino dos Santos, que coloca em risco as pessoas que estão na atividade da pesca, e seus direitos previdenciários e trabalhistas quando diz que a atividade da pesca está acabando e que os pescadores precisam buscar outros meios de vida para se sustentar, ou seja, o trabalho dentro desses empreendimentos.  A gente está com a saúde precária, educação horrível. Não faz sentido para um dos municípios que mais arrecada royalties de gás e petróleo, ter a maioria da população em situação de extrema pobreza [90% da população em situação de pobreza e extrema pobreza no Cadastro Único (CadÚnico), segundo informações da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS) da Bahia.]. A prefeitura tem um discurso em dizer que o município precisa de receita, que os royalties vão terminar. Mas, essa receita é pra quem? Eu venho fazendo duras críticas e me expondo em perguntar onde que foram os royalties do município e ninguém nunca responde. Provocam a miséria da gente para as pessoas acreditarem numa mentira.

R.A.: Nos áudios, os responsáveis pelas ameaças se referem à comunidade de Cova da Onça como se toda ela estivesse contra o senhor, e como se o senhor fosse a única voz contra o empreendimento hoteleiro. O senhor se sente assim?

Eu não estou sozinho nessa luta porque essa luta não é só minha. Envolve os moradores da comunidade de Cova da Onça, Moreré, Monte Alegre, Boipeba, do Brasil e do mundo. Porque estamos falando de impactos ambientais terríveis e irreversíveis contra a natureza. Mas sem dúvida quem se posiciona contra é a maioria. E digo mais, ainda expandiu um pouco. A Ilha de Tinharé também vive o mesmo drama, o mesmo plano de “desenvolvimento”.

R.A.:  Como foi precisar “fugir” do lugar onde viveu toda sua vida?

R.A.: Não foi fácil administrar esse medo. Eu nunca vivi uma situação como essa na minha vida. Nunca entrei numa delegacia. A gente fica com medo porque essas pessoas estão sendo alimentadas por um ódio, de repente as pessoas se transformam, parte para agressão. Tive medo, tanto é que saí de Boipeba de madrugada. Eu moro com a minha esposa numa casinha simples sem segurança nenhuma. Saímos de madrugada porque eu vi que estava cada dia mais intenso as ameaças. Eu tive que administrar o medo pra não deixar minha família ainda mais preocupada. A gente está recebendo apoio, outras comunidades de pescadores e de quilombolas oferecendo abrigo. Eu fico o tempo todo em contato com o pessoal de lá pra saber como é que tá a situação, os ânimos. Avaliando quando é o melhor momento de voltar.

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