A esquerda branca no Brasil precisa de autocrítica e investimento nas novas lideranças, avalia especialista

De acordo com cientista político, apesar de Lula ser uma figura central, partidos de esquerda  precisam ampliar a base de lideranças, preparando o caminho para uma atuação mais diversificada e adaptada aos desafios políticos atuais

Por Elizabeth Souza

Após as eleições municipais de 2024, ficou mais uma vez evidente a força que partidos de direita exercem no país, especialmente os do Centrão. Os resultados reforçam a necessidade de uma autocrítica que vem sendo ignorada pela ala esquerdista. Tal movimento se mostra cada vez mais necessário devido à conjuntura  racista, misógina e patriarcal que envolve esses partidos ditos de esquerda. Enquanto isso, as siglas conservadoras se aproveitam da inércia progressista e avançam como um rolo compressor pelo país.  

“Isso é um alerta para o próprio PT [Partido dos Trabalhadores] e seu projeto de futuro, afinal de contas o Lula  tem 79 anos. É preciso que esse grupo político se pergunte como será o PT após o Lula e como fazer surgir novas lideranças nos cenários nacional e locais”, observa Nauê Bernardo Azevedo, advogado e cientista político. 

Esta renovação política precisa estar realmente comprometida com a pluralidade da população brasileira e o efetivo combate às injustiças sociais dentro e fora dos partidos. No entanto, a esquerda, apesar de se posicionar como defensora das pautas dos Direitos Humanos e das populações sub-representadas, utiliza-se de posturas que vão na contramão do que promete, contradizendo suas cartas de princípios e estatutos.

Contradições à esquerda

O descompromisso dos partidos políticos, inclusive os de esquerda, com a luta contra a sub-representação negra e feminina, por exemplo, ficou evidente durante as votações legislativas para aprovar a  Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 9/2023, conhecida como PEC da Anistia, promulgada em 22 de agosto pelo Congresso Nacional.

A proposta em questão estabelece o perdão de multas aplicadas a partidos políticos que descumpriram as cotas de raça e gênero nos Fundos Partidário e Eleitoral em eleições anteriores. Além disso, determina que os recursos não utilizados sejam direcionados a partir das eleições de 2026. A emenda também estabelece um programa de refinanciamento de dívidas, o Refis, voltado especificamente para partidos políticos, seus institutos e fundações.

Na Câmara, apenas quatro deputados do PT se posicionaram contra a PEC: Reginete Bispo (PT-RS), Luiz Couto (PT-PB), Erika Kokay (PT-DF), além de uma abstenção de Luizianne Lins (PT-CE). Durante o 1º e 2º turno de votação na Casa, o PT foi a sigla que mais reuniu votos a favor da proposta.

Todos os deputados do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) também apoiaram a pauta. Por outro lado, entre os partidos progressistas, PSOL, Novo e Rede apresentaram ampla oposição à proposta na Câmara dos Deputados. No Senado, Paulo Paim (PT-RS) foi o único petista a votar contra a medida.

Em um país, como o Brasil, de maioria negra e onde o racismo permeia todas as esferas da sociedade, é inaceitável que partidos que se apoiam nas pautas democráticas para conquistar votos não estejam efetivamente comprometidos com essas agendas nos espaços de poder. Parafraseando Lélia Gonzalez, se não há igualdade racial, tampouco existe democracia. 

Cenário preocupante

Somando a falta de articulações necessárias, o resultado das eleições municipais de 2024 e a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, o cenário para a esquerda brasileira é preocupante em relação a 2026. Nesse sentido, no Brasil, duas legendas da centro-direita ganharam ainda mais musculatura: o Partido Social Democrático (PSD) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). O PSD desbancou o MDB e liderou a disputa conquistando 887 prefeituras. A sigla emedebista, por sua vez, ficou em segundo lugar com 853 candidaturas eleitas.

No ranking das legendas bem posicionadas, PSD e MDB foram os que conquistaram maior número de capitais, cinco para cada. No cenário geral de vitórias expressivas, também estão o Partido Progressista (PP), com 752 prefeitos eleitos; o União Brasil, com 591; e o Partido Liberal (PL), com 517, 166 prefeituras a mais que em 2020. Nessa mesma linha, em 2025, o Republicanos estará no comando de 440 prefeituras, um plus de 214 cidades em relação à eleição municipal passada.

Pelo PSD, Eduardo Paes é reeleito prefeito do Rio de Janeiro – Imagem: Divulgação

“Esse cenário revela que os vencedores seguem sendo os mesmos de sempre. Nós temos uma estrutura social que acaba contribuindo para reproduzir e perpetuar esse fenômeno nos municípios, principalmente nos locais mais interiorizados do Brasil”, completa.

Resposta que se aplica ao contexto histórico da política nacional, construída através de um sistema escravagista que deu margem a oligarquias consolidando o nepotismo como prática comum, estabelecendo redes de poder familiar que se perpetuam até os dias de hoje em diversas regiões do país. Estruturas criadas a partir do racismo, da heteronormatividade cristã capitalista e patriarcal.  

Essas conjecturas deram régua e compasso para cenários outros, a exemplo do governo ditatorial de Getúlio Vargas, o Golpe Militar de 1964, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e o recente governo de Jair Messias Bolsonaro. Realidades em que grupos formados por pessoas negras, indígenas, mulheres e pessoas LGBTQIAPN+ sempre estiveram na mira. “Então, o quadro que nós temos da eleição de 2024 é parte de um grande filme que vem desde que o Brasil é Brasil”, completa Nauê.

E a esquerda?

Nas eleições deste ano, entre as siglas de esquerda e centro-esquerda, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) foi o que teve o melhor desempenho. No total, foram 312 prefeituras conquistadas, 55 a mais do que em 2020, quando foi vitorioso em 257 cidades. Destas, apenas uma é capital, Recife (PE), que contou com a reeleição de João Campos, vice-presidente nacional do partido, que ganhou no primeiro turno com 78,11% dos votos válidos, alcançando recorde inédito de votação na capital pernambucana.

No entanto, apesar de João Campos ser apresentado como uma suposta “promessa da esquerda” e de seu partido carregar o “socialismo” no nome, o PSB vem assumindo cada vez mais a postura de um partido de direita na busca por robustez política. O apoio à candidatura de Aécio Neves (PSDB) contra Dilma Rousseff (PT) durante o segundo turno das eleições presidenciais, em 2014; o apoio ao impeachment de Dilma, em 2016; e a austeridade fiscal nos governos “socialistas” dão o tom dessa guinada. 

João Campos é reeleito para a Prefeitura do Recife em eleição com resultado histórico – Imagem: Comunicação/PSB

No quesito eleições 2024, o PT também alcançou um desempenho melhor que em eleições passadas, conquistando 252 municípios, resultado mais expressivo desde 2012. Contudo, em regiões estratégicas, como o Nordeste – principal responsável pela vitória de Lula em 2022 –  o PT conquistou apenas uma capital: Fortaleza, no Ceará, com Evandro Leitão, em uma disputa acirrada, onde o petista alcançou 50,58% dos votos no segundo turno.

Considerado o maior partido de esquerda do país, o PT enfrentou dificuldades em traduzir seu apoio em sucesso eleitoral, mesmo contando com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cenário que levantou questionamentos quanto à influência de Lula em diversas cidades brasileiras.

“O PT acabou melhorando um pouco em relação a 2020, mas acabou perdendo em alguns locais onde já ganhou bastante. Então é difícil você dizer que houve um saldo positivo ou negativo”, avalia o cientista político. “Eu diria que foi mais uma oportunidade de enxergar para onde irá o projeto do partido nos próximos anos. E definir ou redefinir aquilo que chama de prioridade dentro do seu projeto político.”

Frustrações

Em São Paulo, a derrota de Guilherme Boulos (PSOL) veio como um balde de água gelada perante expectativas e esforços homéricos em busca da vitória.  Indo ao segundo turno como uma das campanhas mais caras do Brasil e com o apoio de Lula, Boulos perdeu a disputa com 40,65% dos votos ante os 59,35% de Ricardo Nunes (MDB), que foi reeleito na cidade paulista.

Diversos percalços se apresentaram ao psolista na campanha realizada na maior capital do Brasil, dentre eles, a enxurrada de fake news, ferramenta que a cada eleição tem se mostrado como uma artimanha criminosa difícil de se combater. Em pleno segundo turno, o governador de São Paulo e aliado de Nunes, Tarcísio de Freitas, chegou a dizer que o PCC (Primeiro Comando da Capital) – considerada a maior organização criminosa do Brasil – estava orientando votos em  Guilherme Boulos.

Guilherme Boulos tenta mais uma vez e não consegue furar bolha em São Paulo – Imagem: Ricardo Stuckert / PR

Outra derrota do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) que marcou as eleições aconteceu em Belém (PA), com Edmilson Rodrigues, que não conseguiu se reeleger e alcançou apenas 9,78% dos votos no 1º turno. A disputa foi para a próxima fase entre Delegado Éder Mauro (PL) e Igor Normando (MDB), este venceu com 56,36% dos votos. O PSOL não conseguiu eleger nenhuma das 200 candidaturas à prefeitura nessas eleições.

“Isso é um sinal do cansaço da população em geral com o sistema político. Esse cansaço acaba gerando um terreno fértil para que figuras com a retórica agressiva e um discurso que oferta soluções fáceis para problemas complexos, emerjam” comenta Nauê Bernardo. 

Sendo assim, negar a necessidade de reformar as estruturas internas perpetua desigualdades em um cenário que exige mudanças de postura e renovação de lideranças. Ou seja, alcançar maiores espaços no campo político permanecendo com as mesmas peças no tabuleiro continuará trazendo derrotas significativas, como as que aconteceram nas eleições deste ano. 

“Nós precisamos visitar e revisitar o nosso sistema político institucional para que ele possa dar respostas à população. Porque do contrário, veremos o enfraquecimento sistemático da democracia.”, assevera Nauê.

Compartilhar

plugins premium WordPress