Por Catiane Pereira
Desde o dia 10 de maio, circula pelas redes sociais um vídeo que mostra crianças negras de 11 anos sendo abordadas de forma intimidadora e violenta por policiais na rua. A gravação reacende discussões sobre violência policial contra crianças e adolescentes, uma realidade invisibilizada e comum em territórios periféricos, e os traumas que podem ser provocados por essas situações.
Até a publicação deste texto o vídeo compartilhado nas redes já havia ultrapassado 56 mil curtidas e sido replicado por mais de 20 perfis apenas no Instagram. Embora a legenda indique que o episódio ocorreu na Bahia, não há informações confirmadas sobre o local, data ou identificação dos policiais envolvidos.
Ainda assim, tanto a exposição das crianças quanto a abordagem agressiva representam violações claras dos direitos garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Nesta reportagem, quatro pessoas compartilharam com a Afirmativa relatos de abordagens policiais violentas que vivenciaram na infância ou envolvendo suas crianças. Entre elas está Fernanda*, mãe solo que viu seu filho ser humilhado e injustiçado por agentes que, por lei, deveriam garantir a proteção de crianças e adolescentes,e não ameaçá-los.
“Onde você conseguiu esse dinheiro?”
Essa foi uma das perguntas feitas ao filho de Fernanda*, 40 anos, supervisora de atendimento e moradora de Campinas (SP), durante uma abordagem policial. Naquele sábado de maio de 2023, como costumava fazer aos fins de semana, o menino saiu às 8h da manhã para comprar pão em um mercado na mesma rua onde moram. Ele tinha apenas 9 anos.
Pedro*, um menino negro que usava dreads, foi abordado por dois policiais militares ao sair do estabelecimento. O motivo? Suspeita sobre como ele conseguiria dinheiro para comprar pão.
“Quando ele sofreu a violência, não estava cometendo nenhuma falta. A gente mora em uma rua tranquila dentro da periferia. Ele só foi comprar pão”, relata a mãe.
Minutos depois da saída do filho, Fernanda* recebeu um telefonema de um vizinho pedindo que fosse até o mercado. Ao chegar, encontrou Pedro* chorando com uma sacola de pão nas mãos em frente aos policiais. Ela tentou entender o que havia acontecido, explicou que morava ali perto e ofereceu-se para buscar os documentos do filho.
“Perguntei o que meu filho tinha feito. Mas o policial apenas perguntou rispidamente a idade dele e disse que ele não deveria andar sozinho”, lembra.
Mesmo revoltada com a cena, Fernanda* conta que se controlou, temendo ser lida como ‘a preta raivosa’. “A gente duvida do racismo até ele bater na porta da nossa casa. Fiquei desolada ao perceber que pararam meu filho só porque ele é um menino negro. Era de manhã. Ele só tinha ido comprar pão.”
Em casa, Pedro* revelou que um dos policiais zombou de seus cabelos: “Por que você usa esse cabelo feio aí?”. O menino, envergonhado, não respondeu. O policial chegou a exigir o número de telefone da mãe dele. Diante da situação, Pedro* chorou e o policial gritou: “Engole esse choro. Você tem que virar homem.”
Fernanda* desabafa que até então não havia alertado seu filho sobre o comportamento da polícia. “Até aquele momento eu nunca tinha ensinado para o meu filho que um policial também podia ser uma ameaça. Ele sempre viu o uniforme como símbolo de proteção. Mas depois daquilo, tudo mudou.”
Dias antes da abordagem, Pedro* havia pedido para refazer os dreads, empolgado com a ideia de comemorar o aniversário com o tema do filme Pantera Negra. Após a abordagem policial, pediu para raspar a cabeça.
“Ele associou a violência que sofreu ao cabelo que usava. Disse que queria tirar. Não entendeu que o problema não era o cabelo, era o racismo. Isso foi o que mais doeu”, diz Fernanda*.
“Menino preto da periferia tem que andar com RG”
Alessandro Gomes, 47 anos, servidor público em Belém (PA), ainda sente o corpo enrijecer quando vê um policial na rua. “Eu travo. Ando reto, fico tenso. É um medo antigo, que nunca passou”. Ele tinha apenas 12 anos quando foi abordado pela primeira vez. Era uma noite comum no bairro da Terra Firme, em Belém. Ele e os amigos haviam acabado de sair da missa quando a polícia militar os cercou na esquina de casa.
“Mandaram todo mundo encostar na parede. Me puxaram pela camisa nova, que eu tinha separado pra ir à igreja. Era roupa de domingo, sabe? Reclamei, disse que aquilo não tava certo. Um dos policiais puxou um 38 e encostou no meu nariz: ‘Cala a p#rra da boca e vira pra parede’.”

Anos depois, aos 15 anos, Alessandro relata que foi abordado novamente, desta vez por estar andando com uma bicicleta nova, presente do padrinho. “Perguntaram se era roubada, onde estava o documento. Descobri ali que menino preto da periferia tem que andar com RG e com nota fiscal da bicicleta”. Conselho que faz questão de passar aos filhos. “Só nossa palavra não vale nada para eles. A gente precisa provar que é trabalhador o tempo todo.”
“Nossa cor é o principal motivo”
Em Ribeirão Preto (SP), Rudah Felipe de Fazzio Azarias, músico, hoje com 41 anos, relembra o dia em que teve uma arma apontada para o rosto pela primeira vez. “Tinha 12 anos. Estava na rua com meus amigos, só conversando. Todos vizinhos, todos negros. E de repente, do nada, a abordagem.”
A truculência dos policiais, segundo Rudah, deixou marcas profundas. “Choramos. Estávamos desesperados. Hoje sei que não foi a roupa ou somente o lugar ou os objetos. Foi a nossa pele. A nossa cor é o principal motivo.”

Rudah relembra que cresceu com alertas constantes do pai, um ex-escrivão da Polícia Civil. “Ele dizia pra não andar com os braços soltos demais, pra não ficar até tarde na rua. A polícia é diferente com o preto. Meu pai sabia disso. Eu aprendi cedo.”
“Achei que era um assalto. Era a polícia”
Djavan Santana, 43 anos, vive atualmente na Itália, mas nunca esqueceu a abordagem policial que sofreu aos 14, em Salvador (BA), mesma cidade onde supostamente aconteceu a abordagem do vídeo descrito no início desta reportagem. “Era fim de tarde, eu voltava da escola. Estava com uniforme, mochila nas costas, esperando o ônibus. Senti algo gelado na nuca. Achei que era um assalto.”
Contudo, era uma arma policial. “Mandaram eu levantar as mãos, girar devagar. Apresentei meus documentos. Mesmo assim, mandaram encostar na parede. Um deles arremessou minha identidade no meu peito. Peguei com uma mão ainda na cabeça, sem desviar o olhar. Tinha medo de que qualquer movimento fosse mal interpretado naquele momento e sofresse as consequências.”

Djavan ainda carrega o medo. “Hoje, se eu for abordado de novo, o medo é maior. Porque a polícia está ainda mais letal do que naquela época”. Ele lembra que sua mãe o fazia sair de casa sempre com o RG no bolso. “Era um suporte. O único que a gente tinha.”
Quais são as crianças vistas como ameaça?
Gabriela Soares, advogada e coordenadora do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, do Instituto Odara, explica que crianças só podem ser abordadas pela polícia em situações muito específicas, como flagrante de porte de drogas ou armas, ou perturbação da ordem pública. “Mas o que é perturbação? Crianças brincam, crianças fazem barulho. E quais são lidas como ameaçadoras? Dificilmente são as brancas.”
Ela reforça que qualquer abordagem deve ser feita na presença de um responsável legal. “Se isso não for possível, o Conselho Tutelar deve ser acionado. O que não pode ocorrer é o encaminhamento direto para delegacia, nem exposição ou intimidação.”
Quando há violação, os responsáveis pela criança ou adolescente podem processar não só os policiais, mas o próprio Estado. “Eles representam o Estado. E o Estado, nesse caso, falha.”
O Estado que vigia, não protege
O ECA é claro: crianças devem receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias. Mas a prática, especialmente em territórios periféricos, revela uma infância interrompida por olhares suspeitos, algemas simbólicas e ameaças que deixam marcas invisíveis.
Os relatos de Pedro*, Alessandro, Rudah e Djavan revelam um padrão: a violência precoce contra crianças negras, legitimada por estruturas racistas de controle social. Eles não portavam armas, não cometiam crimes, não ofereciam perigo, mas tinham a pele negra, e isso bastou.
Hoje, os três últimos já adultos, seguem afetados por experiências que não deveriam ter vivido tão cedo. Suas histórias se somam às de milhares de meninos e meninas que, em vez de proteção, encontram na figura do policial o medo. E reforçam a urgência de rever as práticas das forças de segurança..
Vídeo viral sem informações públicas
Procurada pela Afirmativa, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) da Bahia não retornou o contato por e-mail. Por telefone, a instituição indicou que fosse solicitado informações diretamente com a Polícia Militar da Bahia (PMBA).
Por e-mail, a Polícia Militar da Bahia (PMBA) informou que não poderia fornecer mais detalhes sem o endereço, a data e o horário exatos da ocorrência. Já a Polícia Civil da Bahia (PCBA), também procurada, afirmou que não tem como dar prosseguimento à apuração sem essas informações. A corporação acrescentou que não é possível identificar os policiais apenas com base nas imagens do vídeo.