No Dia Nacional de Mobilização Pró-Saúde da População Negra, coordenadoras da Associação Papo de Mulher chamam atenção para o descaso com a saúde mental das mulheres negras
Por Andressa Franco*
Imagem: Divulgação
“Saúde”, segundo o preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde, é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças. Um termo bastante amplo, e por isso falar do Dia Nacional de Mobilização Pró-Saúde da População Negra, que marca o dia 27 de outubro, também passa por muitos aspectos.
Para a assistente social e integrante da Associação Papo de Mulher, Tânia Nogueira, ao tratar de questões relacionadas à saúde da população negra, a saúde mental normalmente é deixada de lado. E, apesar de ações como o Setembro Amarelo, é preciso cuidado para que campanhas bem intencionadas não se tornem armadilhas.
A Associação atua e existe desde o final da década de 70 no Movimento da Luta Antimanicomial no Brasil. O movimento tem a nordestina Nise da Silveira, nascida em 1905, como uma de suas percursoras. Um dos episódios mais marcantes do país, o chamado Holocausto Brasileiro, é um dos símbolos da pauta, por representar os impactos dos hospitais psiquiátricos a partir do exemplo do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena. De 1903 a 1996, 60 mil dos pacientes recebidos diariamente foram mortos no centro com o consentimento do Estado, médicos, funcionários e sociedade.
De acordo com Daniela Arbex, autora do livro que denuncia o genocídio promovido pelo Centro, a maioria esmagadora das vítimas era negra. “A única coisa que diferenciava as imagens feitas na ‘Colônia’ dos campos de concentração nazista na Alemanha era exatamente a cor”, disse em entrevista ao Afropress.
Com o lema “por uma sociedade sem manicômios”, o Movimento Antimanicomial conquistou a Reforma Psiquiátrica, que resultou na aprovação da “Lei Paulo Delgado”. A lei estabelece a responsabilidade do Estado no desenvolvimento da política de saúde mental no Brasil, através do fechamento de hospitais psiquiátricos, abertura de novos serviços comunitários e participação social no acompanhamento de sua implementação.
“Tudo piorou”
Com quase 30 anos de atuação como assistente social, experiência na Secretaria de Saúde de Salvador (BA), órgãos de proteção à mulher e em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade, Tânia afirma com propriedade que a maioria das usuárias desses serviços são mulheres negras e periféricas. Foi a partir do trabalho no CAPS Oswaldo Camargo, que decidiu criar com uma usuária do Centro, Girlene Almeida, o Papo de Mulher, para ouvi-las sobre as violências que sofriam.
O objetivo era manter uma entidade que reforçasse a importância dos profissionais e desse visibilidade para os marcadores racial e de gênero no surgimento de transtornos mentais. Como a violência doméstica, racismo, desemprego, violação de direitos e perda de parentes, temas debatidos em rodas de conversa promovidas pela associação.
Apesar de algumas conquistas ao longo da história, a pedagoga e uma das coordenadoras da Associação Papo de Mulher há oito anos, Renilda de Oliveira, vê o atual momento com preocupação. A organização sobrevive de um bazar e de doações das apoiadoras e não possui sede própria para realizar assistência às mulheres. Renilda conta que o máximo que conseguiram foi uma sala cedida por Vilma Reis, enquanto ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia.
“Tudo piorou porque estamos passando por um governo que não merecemos. Nas reuniões virtuais não podemos dar a mesma assistência”, lamenta a coordenadora.
Muitas das mulheres atendidas hoje pelos CAPS e também participantes da Associação, têm histórico de sofrimento em manicômios, já que os Centros só foram criados em 2002, no governo Lula. Para Tânia, no entanto, o funcionamento dos centros é precário porque não se cumpre as leis de utilização dos recursos.
Desmonte do governo Bolsonaro
A pandemia foi um obstáculo na atuação da Associação. No período, a organização constatou que muitos deixaram de funcionar dentro do esquema obrigatório: com oficinas e alimentação. Basicamente o que funcionava era o atendimento psiquiátrico, nos CAPS que tinham psiquiatras, e funcionamento das farmácias para doação da medicação. “Diga-se de passagem: a maioria não tem psiquiatra, nem as medicações necessárias.”, pontua Tânia.
A assistente social acredita que um problema maior, no entanto, é o desmonte da rede de atenção psicossocial do governo Bolsonaro. O que presenta um risco para a reforma psiquiátrica, e a ameaça da volta dos manicômios e extinção dos CAPS, priorizando o atendimento por instituições sociais. Um exemplo na própria Bahia, é a Fundação Doutor Jesus. Instituição veiculada à igreja evangélica, denunciada por castigar os internos.
“Os profissionais estão em queda de braço com o governo federal. Precisamos garantir a reforma psiquiátrica: é a grande batalha da luta antimanicomial”, alerta.
Já Renilda, chama atenção para as dificuldades dos usuários do CAPS em acessar serviços médicos além dos clínicos, como fisioterapia, cardiologia e neurologia. “A saúde pública está precária para nós mulheres negras. Existe descaso da governança em todos os sentidos”, destaca.
A coordenadora do Papo de Mulher denuncia também a retirada do acesso a lazer com visita a teatros e museus, a diminuição do quadro de funcionários e ausência de medicações. Para ela, a medicina ancestral é um caminho de cura que a população negra deveria recuperar. “Não precisávamos estar nos enchendo de remédios: hipertensão, açúcar, pra dormir. Precisamos resinificar a importância dos chás”, finaliza.