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Por que marcharemos de novo: sem Reparação e Bem Viver, o Brasil permanece inacabado para mulheres negras

De 2015 a 2025, entre conquistas e retrocessos, seguimos traçando caminhos de luta para garantir que nossa existência não seja marcada pela negligência do Estado e para que o Bem Viver se torne uma realidade
Imagem: Reprodução

Em 18 de novembro de 2015, a Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver reuniu 100 mil mulheres nas ruas de Brasília (DF). Vindas de todas as partes do Brasil, levavam consigo a força ancestral das que lutaram antes e a esperança de um futuro mais justo para as que chegariam depois. A Marcha marcou um divisor de águas na agenda política racial e feminista brasileira. Era a primeira vez que um ato nacional com essa proporção colocava no centro a vida das mulheres negras e suas reivindicações históricas. 

A Marcha, no entanto, não pode ser entendida como a finalidade da mobilização política. Ela é um método de incidência que não se encerrou nas ruas de Brasília em 2015. Dez anos depois, é possível mensurar seus efeitos e desdobramentos, bem como os desafios que persistem.

Depois de marcharem, as mulheres negras voltaram aos seus territórios convictas de que, quando irmanadas, é possível derrubar as estruturas do racismo patriarcal e construir novas bases ancoradas na participação política, cuidado coletivo e produção de conhecimento. A experiência de 2015 impulsionou a criação de novos coletivos, fortaleceu organizações já existentes e ampliou redes de articulação em diferentes frentes de luta. Em todo o país, surgiram iniciativas que passaram a disputar narrativas, influenciar políticas públicas e fortalecer a presença das mulheres negras nos espaços de decisão.

De lá para cá, presenciamos um tímido, mas importante avanço em relação à representatividade na política, com o percentual de mulheres negras na Câmara dos Deputados subindo de 2% em 2014 para 5,7% em 2022. A presença destas parlamentares vem influenciando alguns importantes marcos legislativos, apesar do desafio de aprovar nossas pautas em um Congresso onde somos minoria. Elas tem conseguido disputar a agenda política e deslocar ao centro do debate temas historicamente silenciados, como dignidade menstrual, descriminalização do aborto, direitos da população em situação de rua, da população LGBTQIA+ e enfrentamento à violência obstétrica. Mas ainda estamos muito distantes do horizonte que almejamos.

Raça e gênero no centro das desigualdades do país

A Marcha de 2015 culminou na elaboração de uma carta que firmou o Bem Viver como um pacto civilizatório que orienta a incidência política do movimento de mulheres negras e apresentou as reivindicações mais urgentes para que esse pacto possa ser consolidado em nossa sociedade. Voltando à carta em 2025, nota-se que as desigualdades denunciadas persistem e, em alguns casos, se aprofundam.

As resoluções da COP30 ainda estarão ecoando nos noticiários quando estivermos marchando em Brasília, depois de autoridades do mundo inteiro terem se reunido na Amazônia brasileira para discutir o colapso climático, outro produto direto do sistema capitalista que enxerga a terra exclusivamente como negócio. Mas, mesmo com todos os alertas, as populações que mais sofrem os impactos seguem invisibilizadas, já que tivemos uma Carta da Presidência da Conferência divulgada sem uma única menção ao racismo ambiental ou às populações afrodescendentes.

Na Carta das Mulheres Negras de 2015, já vínhamos alertando para a urgência da justiça climática, da defesa dos bens comuns e da não-mercantilização da vida. Denunciávamos a necessidade imediata de erradicar o racismo ambiental, impedindo remoções forçadas para exploração econômica, o envenenamento de territórios pelo uso de agrotóxicos, o despejo de lixo em áreas onde há mais concentração de populações negras e a destruição sistemática dos ecossistemas e culturas quilombolas, ribeirinhas e indígenas.

Não fomos ouvidas e as consequências reverberaram ainda mais forte. Prova dolorosa dessa negligência é o assassinato de Maria Bernadete Pacífico Moreira, uma das principais lideranças quilombolas do país. Aos 72 anos, foi executada no Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA), em 2023. Mãe Bernadete representava justamente aquilo que o racismo ambiental tenta silenciar: a defesa do território, da natureza e da vida coletiva. 

Mas não é somente na agenda climática que somos ignoradas. Atualmente, embora as mulheres negras representem 28,5% do total de pessoas que compõem a sociedade brasileira e 28,4% da população ativa, o rendimento financeiro desse grupo mal chega a 16% do total nacional, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Também são elas as maiores vítimas do feminicídio, chegando a 63,6% do total de casos registrados no país. Em outras palavras, somos nós que movemos o país e, ainda assim, a segurança dos nossos corpos não é garantida. 

Se, por um lado, avançamos na capacidade de expor a vulnerabilização das mulheres negras no mundo do trabalho, denunciando as jornadas extenuantes, as remunerações desiguais e a precarização que estrutura a economia brasileira, por outro, esse mesmo movimento permitiu descortinar uma realidade ainda mais brutal: a persistência da escravidão contemporânea no país.

Nos últimos anos, o Brasil tem batido recordes de resgates de pessoas submetidas a condições análogas à escravidão, e entre os casos mais emblemáticos estão os de mulheres negras, especialmente trabalhadoras domésticas. O caso de Sônia, mulher negra e surda mantida em regime de exploração durante décadas, escancara como a intersecção entre raça, gênero e deficiência torna essas violências ainda mais profundas. 

Descortinar essa realidade foi um passo fundamental. Mas e agora? O que fazemos com essas mulheres que sobreviveram a violações tão longas e estruturais? Como reconstruir vidas sequestradas desde a infância? O Estado brasileiro ainda não respondeu à altura da urgência.

Essa desigualdade que vulnerabiliza mulheres negras se insere em um movimento global de acúmulo extremo de riqueza nas mãos de poucos. Relatório recente da Oxfam mostra que, em 2024, o mundo voltou a registrar um pico na concentração de renda, com 204 novos bilionários e um ritmo de enriquecimento dos super-ricos três vezes maior que em 2023. Enquanto isso, a maior parte da população mundial enfrenta crises simultâneas: econômicas, climáticas, políticas e humanitárias, que recaem com força desproporcional sobre as mulheres negras.

É nesse contexto que a Marcha das Mulheres Negras no Brasil ultrapassa as fronteiras nacionais e ganha dimensão global: mulheres de 37 países se organizam em comitês para marchar conosco porque reconhecem não haver como enfrentar as múltiplas crises do presente sem unir vozes, estratégias e lutas. 

Esse mesmo sistema que concentra riqueza e precariza a vida globalmente também destrói a nossa saúde física e emocional. Não surpreende que os impactos desse modelo se expressem de forma tão brutal nos indicadores de saúde da população negra. Uma pesquisa inédita da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) revela que 82,7% das mortes por suicídio no Nordeste, entre 2019 e 2022, ocorreram entre pessoas negras. O racismo segue determinando quem vive e quem morre: mulheres negras lideram as taxas de mortalidade materna e de violência obstétrica, evidenciando que até o direito de parir com dignidade é negado quando o corpo que chega ao hospital é negro. 

No que diz respeito ao direito à informação e à comunicação, as mulheres negras ainda enfrentam o monopólio dos grandes conglomerados de mídia. Segundo o relatório “Race and Leadership in the News Media 2021: Evidence from Five Markets”, do Reuters Institute for the Study of Journalism, não há pessoas negras no comando dos jornais, portais e emissoras da mídia hegemônica no Brasil. Há pouco ou nenhum espaço para as narrativas negras e quando aparecem, costumam estar camufladas por uma retórica de antirracismo superficial mediada por aqueles que têm nas mãos o controle dos meios de comunicação e, consequentemente, das decisões editoriais.

Quando a mídia silencia perspectivas negras, dá lugar à propagação de estereótipos que criminalizam e naturalizam a imagem do nosso povo como alvos preferenciais do Estado. Como parte desse mesmo mecanismo, o modus operandi da segurança pública brasileira escancara cotidianamente o projeto genocida cruelmente articulado contra a população negra. De acordo com dados do 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 79% das vítimas da letalidade policial no Brasil são negras. Estados como a Bahia e o Rio de Janeiro têm se mostrado verdadeiros laboratórios do extermínio. Não existe bala perdida, existem corpos-alvo, comunidades sitiadas e mães que precisam transformar o luto em luta por justiça para seus filhos que tombam diariamente. 

Uma das expressões mais brutais desse modelo fracassado de segurança, sustentado por uma narrativa mal disfarçada de “guerra às drogas” que, na prática, se traduz em uma guerra contra pessoas negras, pobres e periféricas, é o encarceramento em massa. Segundo dados da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad), o encarceramento feminino cresceu 600% nas últimas duas décadas, um salto que não pode ser dissociado da lógica punitivista que atravessa o sistema. Ou seja: enquanto o Estado falha em garantir direitos básicos, responde com criminalização e aprisionamento, ampliando o ciclo de violência, desestruturação familiar e exclusão que recai de forma ainda mais severa sobre mulheres negras.

Essa engrenagem punitivista também se revela no próprio sistema de Justiça, cuja composição e decisões moldam e limitam as possibilidades de transformação. Não é coincidência que, ainda em 2015, na Carta da Marcha das Mulheres Negras, já demandávamos a erradicação do racismo institucional em todas as instâncias do sistema de Justiça. Em 134 anos de Supremo Tribunal Federal, o Brasil jamais teve uma ministra negra, um indicador contundente de como nossas perspectivas seguem excluídas dos espaços mais altos de interpretação da lei. A ausência de mulheres negras nesses espaços decisórios permite a continuidade de uma jurisdição que insiste em tratar conflitos complexos como desvios individuais, reafirmando o controle social sobre corpos negros.

A educação, ferramenta importante que pode apresentar novos horizontes de transformação, também é precarizada pelo Estado. Segundo pesquisa realizada pelo Geledés Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana, divulgada em 2023, 71% das secretarias municipais de educação do Brasil realizam pouca ou nenhuma ação que garanta a implementação da Lei 10.639, que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira. Além disso, escolas com maioria de estudantes negros são as que possuem as piores infraestruturas, marcadas pela ausência de bibliotecas, quadras de esporte, laboratórios de informática e outras instalações que viabilizem uma formação com mais acessos e possibilidades. 

Sem Reparação, não há Bem Viver

Diante de um Estado que tem sua origem ancorada numa lógica racista, sexista e violenta que se arrasta por séculos, perpetuando desigualdades e injustiças, a Reparação se coloca como uma agenda de luta urgente e vital. Reparar significa enfrentar de forma sistêmica os danos acumulados do racismo patriarcal, seja na economia, na política, no direito à comunicação, na segurança pública, na saúde, na educação e em tantos outros campos que atravessam as nossas existências. 

As políticas de Reparação que reivindicamos não se restringem a compensações simbólicas. É preciso pensar em investimentos financeiros, revisão das práticas estatais, participação efetiva das mulheres negras nas decisões e a criação de mecanismos capazes de interromper ciclos de violência e desigualdade. Elas apontam para a urgência de outro projeto de país,  que reconheça a dívida histórica e que assuma, como horizonte político, a centralidade das vidas negras na construção do futuro.

A Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver acontecerá no dia 25 de novembro, em Brasília, e é uma convocação a todas as mulheres negras que sonham e lutam por um mundo mais justo e igualitário. Será o momento de reafirmarmos que a Reparação é o primeiro passo rumo a uma sociedade de Bem Viver para todas as pessoas. 

Junte-se a nós. Cada história conta, cada sonho importa.

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