Califórnia reconhece formalmente seu papel na escravidão nos EUA, mas sem apresentar plano de reparações

A Califórnia foi o primeiro estado dos EUA a aprovar uma lei que abria caminho para reparações pela escravidão, através da criação de uma força-tarefa para examinar o impacto histórico da escravidão e recomendar reparações 

Por Andressa Franco

O governador do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, Gavin Newsom, se juntou no dia 27 de setembro a uma longa lista de autoridades que reconheceram o papel de suas cidades, estados e países na escravidão e em políticas discriminatórias contra negros, mas sem apresentar um plano de reparações à sua população afrodescendente.  

Newsom transformou uma declaração formal em lei visando assegurar sua preservação nos arquivos do estado. De acordo com o texto, a Califórnia “assume a responsabilidade por seu papel em promover, facilitar e permitir a instituição da escravidão, assim como seu duradouro legado de discriminação racial”.

A declaração foi uma das recomendações de um grupo multidisciplinar criado no contexto do movimento “Vidas Negras Importam” e das manifestações contra o racismo que tomaram os Estados Unidos depois do assassinato de George Floyd por um policial branco, em 2020.

O pedido de desculpas foi aplaudido por ativista negros, mas alguns ressalvaram a expectativa de que o estado oferecesse também compensações econômicas aos descendentes de escravizados.

A Califórnia foi o primeiro estado dos Estados Unidos a aprovar uma lei que abre caminho para reparações pela escravidão. Em 2020, o governador sancionou a Assembly Bill 3121, que criou uma força-tarefa para examinar o impacto histórico e atual da escravidão, e recomendar reparações para os descendentes de pessoas escravizadas nos EUA. 

Em 2023, a Força-Tarefa de Reparações da Califórnia apresentou um relatório de centenas de páginas com recomendações à câmara estadual. Além do pedido de desculpas formal pela escravidão, o grupo sugeriu reparação financeira aos cidadãos do estado que consigam provar que descendem de pessoas escravizadas. O valor poderia chegar a US$1,2 milhão por pessoa acima dos 71 anos.

Um outro comitê, criado na cidade de São Francisco, foi além. Entre suas sugestões estavam compensações financeiras de US$ 5 milhões, cerca de R$ 24 milhões, por residente que se qualifique, a oferta de uma casa própria pelo custo de US$1 e garantia de salário anual acima de US$ 97 mil durante 250 anos.

A ausência de um plano de reparações com a lei assinada pelo governador californiano na última semana remete a Portugal em abril deste ano, quando o presidente Marcelo Rabelo também fez uma declaração sobre reparações. O país reconheceu pela primeira vez que foi responsável por uma série de crimes contra escravos e indígenas no Brasil na era colonial e que deve pagar por isso. Rabelo sugeriu que se governo deveria fazer reparações pela escravidão. Dias depois, o primeiro-ministro negou a existência de processo de reparação por crimes contra ex-colônias

Leis californianas contribuíram para perpetuação da escravidão

A Califórnia não aderiu oficialmente à escravidão quando se tornou um estado dos Estados Unidos. Quando foi admitida na União através do Compromisso de 1850, era considerada um estado livre, ou seja, a escravidão foi proibida no território. No entanto, a escravidão ainda era praticada de maneira ilegal ou através de lacunas na lei.

Muitos proprietários de escravos do Sul levaram seus escravos para a Califórnia durante a corrida do ouro, aproveitando a falta de fiscalização rigorosa. 

Uma das leis estaduais que contribuíram para a perpetuação da escravidão na Califórnia foi a chamada “Lei do Escravo Fugitivo”, sancionada em 1852. Ela previa que pessoas negras escravizadas que entraram no estado antes de sua admissão à União não tinham o direito à liberdade.

Após o fim da Guerra Civil (1861-1865) e a abolição da escravidão em todo os EUA, a Califórnia manteve por décadas uma proibição ao casamento inter-racial, além de permitir a presença de grupos como o Ku Klux Klan. O estado também adotou políticas de segregação que impediam pessoas negras de viver em determinados bairros.

Primeira cidade dos EUA a adotar reparações financeiras ameaçada

Cerca de uma dúzia de estados americanos já pediram desculpas formalmente por sua participação na escravidão, mas reparações financeiras estão longe de ser um consenso. De acordo com uma pesquisa da CNN-Kaiser de 2015, pelo menos 52% dos afro-americanos apoiaram os pagamentos aos descendentes de escravizados, enquanto 89% dos norte-americanos brancos entrevistados se opuseram à ideia.

Os EUA, no entanto, têm uma experiência, com a cidade de Evanston, em Chicago, Illinois, que se tornou a primeira do país a pagar restituições em dinheiro a pessoas negras como reparação pela escravidão, políticas de segregação e consequências do racismo através dos anos.  

Poderiam acessar os recursos pessoas negras que viveram ou descendam de moradores da cidade entre 1919 e 1969. Época marcada por diversos decretos governamentais e práticas discriminatórias, para além das próprias leis Jim Crow, que institucionalizavam a segregação racial em espaços públicos nos EUA entre 1876 e 1965.

Os recursos para financiar o programa, conhecido como Restorative Housing Program, vêm de doações comunitárias e a 3% da receita do imposto da maconha recreativa, que é legalizada em Illinois. A proposta era adotar um fundo de reparação para distribuir US$ 10 milhões por 10 anos para custear reparos domésticos ou hipotecas. 

Até maio deste ano, 193 pessoas foram beneficiadas, recebendo US$ 25 mil (cerca de R$ 132,3 mil) cada, em um total de quase US$ 5 milhões (cerca de R$ 26 milhões).

No entanto, desde o final de maio, a iniciativa está ameaçada, porque a cidade enfrenta uma ação judicial da organização Judicial Watch. A ação coletiva foi movida em nome de seis moradores da cidade que não são negros, e alega que a raça como critério de elegibilidade para o programa seria discriminação racial contra moradores que não são negros. O processo pede que o uso da raça no programa seja declarado inconstitucional e uma indenização de US$ 25 mil para cada, mesmo valor destinado aos beneficiados pelo programa.

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