Por Andressa Franco
Aconteceu de novo. Semanas após o aniversário de 10 anos da Chacina do Cabula e três anos da Chacina da Gamboa, mais uma chacina de verão marcou a Bahia, dessa vez no bairro Fazenda Coutos, no Subúrbio Ferroviário de Salvador (BA).
Os policiais militares das Rondas Especiais Baía de Todos-os-Santos (Rondesp) deixaram 12 vítimas na terça-feira de Carnaval (4). A polícia alega que houve resistência e as mortes ocorreram em confronto.
Mais uma vez se repete o método cristalizado do governo da Bahia, que celebra a imagem de paraíso carnavalesco e praias ensolaradas para turistas, enquanto mantém sua população negra e periférica coagida em seus territórios através do seu braço armado.
“Polícia Militar tem que acabar”, foi o que escreveu um internauta em uma das diversas publicações da Prefeitura de Salvador, que enaltecia a festa e o recorde de Salvador como maior Carnaval de trio elétrico do mundo. “Ficou com pena dos seus 12 amigos que se foram”, provocou outro em resposta.
A estratégia utilizada há anos já deixou marcos como os 12 adolescentes e jovens assassinados no Cabula pela polícia, poucos dias antes do início do Carnaval de 2015. Bem como os três jovens mortos pela mesma polícia enquanto comemoravam o Carnaval em um bar na comunidade da Gamboa, em 2022, quando foram levados por agentes da Rondesp para uma casa abandonada, onde foram executados.
100ª chacina em Salvador e RMS
A chacina em Fazenda Coutos foi registrada como a 100ª em Salvador e Região Metropolitana desde julho de 2022, quando o Instituto Fogo Cruzado deu início ao seu monitoramento no estado. Trata-se da segunda maior chacina registrada pelo Fogo Cruzado na RMS.
Das 100 chacinas contabilizadas, 67 ocorreram em ações policiais, resultando em 261 vítimas, ou seja, 70% das 373 mortes produzidas nessas ocorrências. Já as disputas entre grupos armados aparecem como causa de 11 das chacinas, deixando 49 mortos.
Entre as 373 vítimas de chacinas registradas, estão três idosos, 347 adultos, nove adolescentes e uma criança, além de 12 pessoas cuja faixa etária não foi identificada. A maioria das vítimas eram homens (345), equivalente a 93% dos mortos. Outras 20 vítimas eram mulheres (5%), enquanto o gênero de oito pessoas não foi informado. Dos identificados racialmente, 80 pessoas eram negras, enquanto impressionantes 293 pessoas não tiveram sua raça identificada.
O Instituto Fogo Cruzado define chacina como qualquer evento em que três ou mais civis são mortos a tiros na mesma situação, independentemente da motivação — seja assalto, disputa entre grupos armados ou operação policial. Quando as mortes ocorrem durante ações das forças de segurança, são classificadas como chacinas policiais.
O pico no número de ocorrências desse tipo aconteceu em 2023, quando foram registradas 190 chacinas, sendo 136 delas decorrentes de ações policiais. Em 2024, foram 92 casos, sendo 55 chacinas policiais; enquanto 2025, ainda nos primeiros dias de março, já chegou a 31 chacinas, 25 delas em ações policiais. Já em 2022, contando a partir de julho, o Instituto contabilizou 60 ocorrências, 45 delas chacinas policiais.
A capital baiana lidera o ranking dos municípios com o maior número de ocorrências:
- Salvador: 63 chacinas, 46 em ações e operações policiais
- Camaçari: 16 chacinas, 6 em ações e operações policiais
- Candeias: 7 chacinas, 4 em ações e operações policiais
- Lauro de Freitas: 6 chacinas, 5 em ações e operações policiais
- Simões Filho: 4 chacinas, 3 em ações
- Mata de São João: 2 chacinas, 1 em ação/operação policial
- Itaparica: 1 chacina em ação policial
- São Sebastião do Passé: 1 chacina
- Vera Cruz: 1 chacina em ação policial
PM deixou 14 vítimas em Fazenda Coutos, afirmam moradores
De acordo com moradores de Fazenda Coutos, o número de mortos, em um suposto confronto, divulgado pela polícia ainda pode estar subnotificado. Uma jovem revelou ao jornal A Tarde que foram 14 vítimas, uma delas o seu irmão, Davi Costa dos Anjos, de apenas 17 anos, que vendia jujuba.
A versão oficial defende que os homens teriam atirado contra os agentes antes de se abrigarem em uma residência, onde um novo confronto ocorreu.
Mas a irmã de Davi relata que ele estava na casa onde os outros homens foram mortos porque não teve alternativa além de correr para se esconder, já que os policiais chegaram na rua atirando. “Quando eles [policiais] chegaram, quem não devia nada, saiu correndo e invadiu a casa. Vizinhos ouviram eles pedindo socorro, dizendo que não se envolviam com nada. Mas disseram [PMs] que iam matar todo mundo. Para meu irmão, disseram que iam só deixá-lo aleijado para servir de exemplo, mas também o mataram.”
O jornal também ouviu a irmã de Francisco Meriel Freire Santos, de 17 anos, que trabalhava como pedreiro. Ela conta que o adolescente foi morto durante a ação com um tiro nas costas, enquanto os dois conversavam na porta de casa. “Depois puxaram ele e deram mais tiros”, completou.
A apuração também confirmou com um funcionário do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues o número de 14 mortos. “Foram 14 cadáveres, o pessoal está dizendo 12, mas é mentira. Quem sabe se são 14 ou 12 é a gente que trabalha aqui [IML]. Todos os 14 são de Fazenda Coutos”, afirmou, detalhando ainda que a maioria tinha entre 17 e 20 anos.
Confrontada por essa versão, a Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP/ BA), insistiu que foram 12 mortos, e ressaltou o envolvimento das vítimas com o crime, deixando a entender que acusados de cometer crimes devem ser mortos pela polícia.
Na quarta-feira (5), em gravação do podcast “Fala Jerô”, do governo baiano, o governador Jerônimo Rodrigues (PT) argumentou que a comunidade vinha se queixando da violência, e que a inteligência detectou, por câmeras, a disputa de duas facções. O petista reforçou a versão de que os policiais foram recebidos a tiros, e informou que um estudo está em curso para verificar “se houve exagero da polícia”.
Em 2015, após a chacina do Cabula, o então governador e hoje ministro da Casa Civil Rui Costa (PT) descreveu a ação dos policiais como a de “um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol. Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão.”
A política de segurança pública de Jerônimo Rodrigues não destoa daqueles que o antecederam. Aos turistas oferece “passarela do Apartheid”, festas intermináveis, música e riquezas culturais, onde a presença da juventude negra só é aceita na linha de frente dos serviços, como ambulantes nas praias e cordeiros nos circuitos. Enquanto isso, nos bairros periféricos e mais negros da cidade, como em Fazenda Coutos, o Estado chega apenas através do seu braço armado, sendo essa a única resposta possível para as demandas dessa população, constantemente violentada em seus territórios.