Por Andressa Franco
Quando Ariane Teixeira de Santana, de 37 anos, foi selecionada para a Internacionalização do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Saúde (PPGENF) da UFBA, a expectativa era de trocar conhecimentos com pesquisadores, fortalecer redes acadêmicas e enriquecer sua formação.
No entanto, o que aconteceu foi bem diferente. “Eu fiz todo o trâmite burocrático, me inscrevi e fui selecionada. A pós-graduação daria um recurso para a gente viajar e outras coisas a gente teria que arcar”, lembra a doutoranda do PPGENF, a respeito da viagem para Portugal, que aconteceu de 22 de outubro a 04 de novembro de 2023.
Ariane, que pesquisa racismo obstétrico, não conhecia nenhum dos outros três estudantes que foram selecionados. Mas no decorrer da viagem seria alvo de racismo recreativo de um deles, o também doutorando do PPGENF, Vinicius de Oliveira Muniz.
“O primeiro embate que tivemos, foi porque eles comentaram sobre uma colega negra, que sempre se posiciona nos grupos. Eu fiz uma defesa. E o Vinicius falou que sobre essa questão de raça, ele ficava muito incomodado porque ouvia de alguns professores ‘como se as pessoas brancas tivessem culpa do racismo’”, relata.
Nos dias que se seguiram, apesar do incômodo com a fala do colega, Ariane conta que continuaram se tratando normalmente. Inclusive porque os quatro selecionados dividiam a mesma casa onde se hospedaram durante os dias em Portugal. “Eu entendi que aquela não era minha galera, e que teria apenas que conviver naquele período.”
Montagem fotográfica com manequim negro
Até que no dia 30 de outubro, o grupo participou de uma visita guiada à Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa. No local, Ariane se surpreendeu positivamente ao encontrar manequins simuladores de cor negra, que são utilizados para treinamento de procedimentos.
“Na UFBA temos contatos com manequins, mas são todos brancos. Como a diretora da Escola de Enfermagem da UFBA estava na visita, eu falei justamente da minha grata surpresa. Especialmente por ser um ambiente colonizador”, conta.
O comentário, avalia Ariane, despertou um incômodo em Vinicius, já que o debate sobre racismo voltou a se tornar o centro da discussão. Foi quando uma das professoras a chamou para ver outros manequins, também negros, dessa vez infantis. Nesse momento, Vinicius sugeriu que tirassem uma foto perto dos manequins.
“Achei estranho, mas passou”, comenta Ariane. De volta para a hospedagem, a doutoranda descobriu o porquê da foto. Estava saindo do banho, quando ouviu risadas altas vindas do quarto. Lá, encontrou os colegas rindo de algo em seus celulares: era uma montagem de Ariane, onde seu rosto era substituído pelo do manequim infantil de cor negra.
A foto foi enviada para o grupo de WhatsApp em que estavam os quatro discentes que participavam da Internacionalização. Ariane mostrou a montagem para uma amiga que morava no país e estava acompanhando a viagem, e para a professora que os acompanhava. Ambas concordaram que o conteúdo não tinha nada de engraçado.
“De cara, eu não entendi. Dormi muito mal, e quando acordei comecei a me isolar para tentar processar. Na verdade, eu já tinha entendido o que tinha acontecido, mas não queria causar desconforto. Porque eu já estava sendo taxada como problematizadora, pelas discussões sobre pautas raciais”, desabafa Ariane.
Durante a viagem ela já havia se recusado a tirar uma foto com os colegas no Padrão dos Descobrimentos, monumento em Lisboa, que já recebeu diversas críticas relacionadas ao racismo e à celebração de um passado colonial. A estátua já sofreu intervenções, uma delas com a inscrição em tinta dos dizeres ‘A nação que matou África’.
Depois do envio da foto, foram mais cinco dias na Europa. Nesse período, Ariane chegou a realizar uma consulta virtual com a sua psicóloga, por estar “no seu limite emocional”. No último dia da viagem, dividiu seu desconforto com os colegas, e disse que aquilo não se tratava de uma brincadeira inocente, mas de racismo recreativo.
Segundo a doutoranda, os colegas a confrontaram e chegaram a insinuar que Vinicius também poderia considerar que ela havia sido homofóbica com ele. “Ele falou que eu era maldosa, que estava vendo coisas onde não existia, que passei a viagem toda problematizando, que eu estava querendo me vitimizar.”
A doutoranda concluiu que a conversa não chegaria a um lugar produtivo, e a partir daí se distanciou. Após a volta para o Brasil não tiveram mais contato.
Vinicius confessou o ato, mas alega que não sabia o que era racismo recreativo
Uma vez no Brasil, Ariane cogitou trancar o curso, e sofreu com crises de ansiedade. Mas ao contar o ocorrido a sua orientadora, foi incentivada a levar a denúncia para a universidade. Assim, no dia 12 de novembro de 2023, Ariane escreveu o seu relato para o PPGENF.
O Quilombo das Iyás Dalzira e Xica Manicongo, coletivo criado por estudantes negras do ISC, publicou uma nota de repúdio, afirmando que as condutas denunciadas por Ariane são incompatíveis com ambientes acadêmicos e não podem ser toleradas, ou normalizadas.
“Estudantes em processo formativo de pesquisa no campo da saúde devem compreender a dimensão do racismo no adoecimento psíquico da sociedade que pretende cuidar”, diz um trecho da nota, publicada no dia 20 de novembro de 2023, cobrando as medidas cabíveis do PPGENF e outras instâncias da UFBA.
Assim, foi aberto um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), que ouviu 11 pessoas, sendo cinco estudantes de doutorado presentes na missão internacional. Em seu depoimento, Vinicius confessou a autoria da montagem fotográfica e do envio no grupo de WhatsApp, informando que agiu sozinho, com intuito de “fazer uma brincadeira” e sem intenção discriminatória. Em seu relato, disse que “pensando que tinha liberdade e intimidade para brincar com a Ariane”, ele fez a “brincadeira”.
O enfermeiro também se disponibilizou para atividades de cunho educativo sobre letramento racial, e que se refere ao seu ato como “brincadeira”, apesar de reconhecer que foi uma “atitude de racismo recreativo”, mas que entendeu isso apenas depois, já que “não sabia sobre esse conceito”. Mesmo que Ariane tivesse expressado seu incômodo e sua interpretação da atitude de Vinicius como racismo recreativo, ainda na viagem.
O relatório final do PAD foi publicado no dia 14 de março deste ano, considerando Vinicius culpado pela conduta de discriminação racial. Entre as recomendações, foi sugerida uma suspensão de até 90 dias de suas atividades na universidade, além de realizar atividades de “letramento racial”. A reportagem tentou contato com Vinicius Muniz, mas não houve retorno até o fechamento desta matéria.
“O discurso é bonito, e extremamente importante. Mas na prática, eu me senti desolada”, avalia Ariane sobre as medidas adotadas pela UFBA. Para ela, atividades de letramento racial não são o suficiente. “Ele era chamado de príncipe pelas professoras, mas se fosse um menino negro, a sociedade queria que estivesse atrás das grades. Como ele é um menino branco, mesmo com um processo em aberto, ele é o pobrezinho, precisa ser ensinado, então a pena dele é participar de atividades.”
O processo a que Ariane se refere não é o administrativo após sua denúncia na UFBA. Durante suas pesquisas e de sua advogada para processar Vinicius, foi descoberto que em 2012, aos 22 anos, ele foi denunciado pelo Ministério Público do Estado do Espírito Santo, seu estado natal, por um homicídio de trânsito, que ocorreu em novembro de 2010.
De acordo com a denúncia do órgão, Vinicius dirigia em alta velocidade e pela contramão, quando atingiu duas pessoas negras que caminhavam na calçada, que foram arremessadas a metros de distância. A denúncia o acusa ainda de se evadir do local sem prestar socorro, retornando minutos depois para conduzir as vítimas ao hospital, mas coagindo uma das vítimas a concordar com sua versão do acidente.
“Agravando ainda mais a situação, o denunciado, na confecção do Boletim de Acidente de Trânsito (BOAT), com o intuito de induzir a erro o agente policial sobre o estado do evento, afirmou falsamente acerca a localização exata do atropelamento”, diz a denúncia do MP-ES. Uma das vítimas ficou internada por três meses, e faleceu um ano após o atropelamento, devido a sequelas neurológicas do acidente.
Justiça busca citar Vinicius formalmente
Ariane também decidiu formalizar a denúncia, registrando um Boletim de Ocorrência na 7ª Delegacia de Polícia de Salvador, no Rio Vermelho, no dia 30 de novembro. A advogada de Ariane, Renata Priscila Santana Rocha, explica que embora o delegado tenha sido muito solícito, não houve nenhuma diligência após o registro.
“Tentei me comunicar com a delegacia para saber se o B.O. tinha dado andamento ou se houve direcionamento ao Ministério Público. Mas não tive resposta. Ficou parado”, acrescenta a advogada.
Diante disso, Ariane também apresentou a denúncia diretamente ao MP. O caso foi levado para a 01ª Promotoria de Justiça de Direitos Humanos no dia 14 de dezembro de 2023. A promotora Lívia Vaz determinou a apuração da “suposta prática do crime racismo” no dia 19 de agosto de 2024.
A primeira audiência de instrução foi realizada no último dia 4 de outubro. Quando Ariane foi informada pela promotora sobre a possibilidade de ajuizar uma ação de indenização pelos danos materiais e morais sofridos em decorrência dos fatos noticiados. “Eu comecei a fazer tratamento psíquico, estou tomando medicamento controlado, que não é barato, fazendo sessão de terapia”, completa a doutoranda.
Para Renata, embora os procedimentos sejam lentos, existe a expectativa de que Vinicius receba a devida punição pelo que fez. “[As atividades de letramento racial recomendadas pela UFBA] ainda não são o suficiente. Temos um código que diz que o crime de racismo existe. Então queremos que ele seja responsabilizado pelos seus atos.”
No momento, a promotoria busca citar formalmente Vinicius no processo judicial, para que ele seja informado da existência da ação, e possa exercer o contraditório e a ampla defesa, conforme o devido processo legal.
“Eu recebi vários relatos de colegas que se afastaram da pós-graduação por conta do racismo. Não adianta só ter cota e fazer com que o negro entre na universidade. A gente precisa ter saúde mental para seguir nesse ambiente. Eu não quero ter que ficar problematizando a minha existência, eu só quero fazer minha pesquisa”, desabafa Ariane, que tem sido inclusive pressionada por docentes da Escola de Enfermagem a interromper suas denúncias e exposição do ocorrido, para não prejudicar a imagem da instituição.
Racismo Recreativo
No dia 11 de janeiro de 2024, pouco mais de dois meses depois da história vivida por Ariane, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que equipara o crime de injúria racial ao de racismo, que é inafiançável e imprescritível. A alteração da Lei Contra o Racismo, de 1989, passou a considerar o racismo recreativo, incluindo o uso do humor hostil e racista, um ato criminoso e passível de prisão por até 5 anos.
Renata classifica a decisão como histórica. E lembra que, quando apresentaram a denúncia sobre o caso de Ariane, antes de a nova legislação ser sancionada, tiveram receio de mencionar racismo recreativo na denúncia.
“No entanto, com essa decisão, eu acredito que tanto a promotora do caso no MP, como a relatora do PAD da UFBA, conseguiram refletir sobre isso. O que Ariane quer é uma responsabilização, que se encaixe na nova lei, com um processo digno e célere”, conclui.