População carcerária brasileira chegou a mais de 820 mil detentos em 2021. Mais de 67% destas pessoas são negras e 28,5% aguarda pelo julgamento
Por Andressa Franco e Daiane Oliveira
Imagem: Uchoa Silva/SEAP
No último dia 28 de fevereiro foi anunciado o resultado da primeira chamada do Sisu – Sistema de Seleção Unificada. Milhares de estudantes que realizaram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) comemoraram o ingresso nas universidades.
O Enem para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL) também gerou aprovações. No Pará o número de internos do sistema prisional aprovados foi de 464, um crescimento de 108% em relação a 2021. No Rio Grande do Norte, um interno passou em 1º lugar nas vagas destinadas a cotistas no curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Em Alagoas, 66 detentos foram aprovados, número 13 vezes maior que na edição de 2021. No Tocantins, custodiados e socioeducandos alcançaram até 840 nas redações do Enem PLL. O nível de dificuldade do exame é o mesmo do Enem regular.
Para a população preta e periférica, a educação pode ser uma oportunidade para se inserir em espaços antes distantes. Para a população carcerária – majoritariamente negra e periférica – pode ser uma forma de reinserção à essa sociedade. De acordo com dados da edição de 2022 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2021 a população carcerária brasileira atingiu 820,7 mil. 67,5% deste total é formado por pessoas negras. De acordo com o Patronato de Presos e Egressos do Estado da Bahia (PPEBA) na Bahia, esse número ultrapassa 80%.
A pesquisa “O funil de investimento da segurança pública e prisional no Brasil”, realizada pelo JUSTA, no entanto, mostrou que na Bahia, em 2021, para cada R$ 175 destinados ao policiamento no estado, apenas R$ 1 foi gasto com políticas voltadas para egressos do sistema prisional e pessoas privadas de liberdade.
Políticas de Reinserção
De acordo com a Lei 7.210/84, é obrigação do Estado “prestar assistência ao egresso a partir de orientação e de suporte aos detentos com a finalidade de reintegrá-los à sociedade”.
Para Arthur Sá, advogado especialista em Ciências Criminais, membro da Comissão de Advocacia Negra da OAB-BA, políticas de reinserção podem ser definidas como o conjunto de medidas desempenhadas pelo Estado para a reabilitação dos egressos do sistema prisional “com o intuito de dissolver as causalidades que levaram o sujeito ao ato criminoso”. Ações afirmativas nas áreas da educação e do emprego são exemplos.
“Quando você chega no maior complexo penitenciário do Rio de Janeiro, o Complexo de Bangu, tem um letreiro escrito ‘ressocializar para o futuro conquistar’. Sempre me causa muito incômodo porque não existe nenhuma política de ressocialização efetiva nas nossas unidades prisionais”, critica Juliana Sanches, diretora jurídica do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN) e diretora nacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
Para a advogada criminalista alguns fatores contribuem para que não haja a reinserção à sociedade. O contexto de superlotação e péssimas condições das unidades prisionais; déficit de acesso à justiça; prazos vencidos de direitos de progressão de regime e alto número de presos provisórios são alguns deles.
Segundo ela, o longo período de isolamento, sem possibilidade de trabalhar ou estudar, faz com que as pessoas saiam do cárcere sem oportunidades, perspectivas, e até com vínculos familiares rompidos. Logo, se o Estado não atua para promover possibilidades de geração de renda e dignidade, o cenário mais provável é a reincidência ao crime.
Cristiano Silva, de 46 anos, é graduado em História pela UNESA e co-fundador da Associação EuSouEu – A Ferrugem, uma organização de sobreviventes do cárcere. Para ele, que também foi um egresso do sistema carcerário, discutir políticas desencarceradoras está fora das preocupações da sociedade.
“Afinal ninguém quer ser tachado como protetor de jovens infratores e de bandidos. Quando param para discutir, o único discurso que sai é diminuir a idade penal e recrudescer a pena”, questiona Cristiano.
Falta vontade política para reinserção de jovens e adultos ao mercado de trabalho
Segundo a pesquisa do JUSTA, que analisou dados orçamentários destinados às polícias, ao sistema penitenciário e políticas para egressos em oito estados brasileiros, o orçamento geral do governo da Bahia em 2021 foi de R$ 53,4 bilhões. Desse total, 7,5% foi destinada às polícias. Nenhum recurso foi destinado exclusivamente para egressos.
Para Juliana Sanches, o que justifica essa distribuição é a política de extermínio da população negra. Já Arthur Sá ressalta a “vontade política” como fator para traduzir esses números.
“Há de se considerar que presos condenados não votam. Paralelamente a isso, a sociedade é culturalmente levada a nutrir um sentimento de ‘vingancismo penal’, onde qualquer melhoria no sistema é vista com maus olhos, pois estaria beneficiando criminosos, o que não é verdade”, acrescenta o advogado.
De acordo com o levantamento foi possível identificar apenas três ações do governo da Bahia voltadas para egressos: “Apoio ao funcionamento do serviço de saúde e assistência social do sistema penitenciário”, “Assistência ao interno e egresso com oferta de atividade laborativa” e “Capacitação profissional do interno e egresso”. O que vai ditar a efetividade de tais iniciativas, destaca Arthur Sá, é o seu acompanhamento e tratamento dos dados obtidos com os resultados apresentados.
“A prisão é um território racializado”
Para Juliana, a prisão é um território racializado, assim, não recebe atenção do Estado porque se trata de uma população “invisibilizada, marginalizada e considerada descartável”.
“Eu vi por dentro, como nós corpos pretos, negros, afrobrasileiros, afroamericanos, afroindigenas somos a cana que faz a máquina funcionar e moer, nos trituram para extrair toda nossa força vital a fim de adoçarem seus privilégios e manter o poder”, ressalta Cristiano Silva.
Para ele é importante também compreender que o encarceramento de pessoas negras é um projeto.“Decerto, é um projeto político civilizatório e colonial, que vigora em cada beco, em cada viela, em cada corpo social e economicamente indesejável e matável”, aponta o historiador. Para completar, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, 28,5% da população carcerária brasileira é provisória – ainda sem sentença.
Um caso emblemático que deu visibilidade a esse racismo é a história da defensora dos direitos humanos, ativista e artista Preta Ferreira. Ela foi presa em 2019, por mais de 100 dias, por ser atuante no Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) e na Frente de Luta por Moradia (FLM) da cidade, em São Paulo (SP). Em seu livro “Minha carne: Diário de uma prisão”, ela conta: “Depois que fui presa, percebi que quase toda a humanidade está mais presa que eu. Percebi também que o povo preto nunca foi livre, pois nossos direitos não são garantidos, estamos sempre lutando para sobreviver, fugir da escravidão.”
Na atuação do IDPN não são incomuns relatos de clientes que, uma vez livres, não conseguem retomar suas vidas. Entre os exemplos, um cliente cujo processo foi arquivado, e ainda assim foi bloqueado do aplicativo da Uber quando tentou se cadastrar como motorista. Mesmo absolvido, ainda é registrado com antecedentes criminais.
“Essa pena parece perpétua, marca sua trajetória e faz com que não consiga sequer ter meios básicos de subsistência. Esse é só um de muitos casos. Ninguém quer contratar pessoas que passaram pelo centro prisional”, explica a advogada Juliana.
Uma medida considerada eficaz pela advogada nesse sentido é o Trabalho Extra Muros, benefício concedido pelo Juiz da Vara de Execução Penal ao interno que cumpre pena no regime semiaberto, e consiste em sua saída para o trabalho. Além de permitir uma volta gradual ao convívio com a família e com a sociedade.
Essa pena que nunca acaba e atinge diversas camadas é definida por Cristiano Silva como “um equipamento que atravessa a barreira entre o concreto e o abstrato”. Para ele, a partir do momento, no qual um corpo recebe a condenação, recebe também o etiquetamento em todos os sentidos, seja no social, no econômico e no político.
Poder público e sociedade civil precisam buscar alternativas
Para Arthur Sá, a mudança desse quadro é gradativa e lenta, demanda esforço, investimento público e fiscalização. Votar em planos de governo que contemplem a questão prisional de maneira responsável, aponta, é o caminho. “O recrudescimento de leis e a construção de um direito de inimigo onde o sujeito delinquente é submetido a tratamento desumano nada contribuíram para a solução deste cenário.”
“Tem pessoas que saem das unidades prisionais só com a roupa do corpo, sem o dinheiro sequer da passagem, se é que tem algum local para retornar”, lamenta Juliana.
Uma das políticas existentes no Brasil é o patronato, órgão público ou particular de assistência ao condenado em regime aberto e ao liberado definitivo por um ano, e ao liberado condicional, durante o período de prova. O objetivo é minimizar a marginalização social do egresso.
Juliana ressalta também ser essencial chamar atenção da sociedade civil organizada para combater essa realidade. Principalmente para avaliar as alternativas mais eficazes, sejam os patronatos, as casas públicas para empregar os egressos ou o fortalecimento das parcerias do Estado com empresas privadas para obrigar que uma porcentagem de vagas sejam destinadas a essa população.
“A gente não tem todas as respostas, mas o fato é que a gente precisa voltar os olhares para essas pessoas, que precisam de estudo e oportunidades de geração de renda para reconstruir suas vidas”, finaliza.