Por Elizabeth Souza
Considerado o menor estado do Brasil em extensão territorial, Sergipe possui uma população composta por 2.210.004 pessoas – sendo que 52,1% delas são mulheres e 77,7% do total populacional é negro, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022. É neste território do Nordeste que nasceu a Auto-organização de Mulheres Negras de Sergipe Rejane Maria, em 2014, “provocada por anseios de mulheres negras com realidades diversas”, como registra o movimento em sua biografia.
A partir de rodas de conversa, projetos e iniciativas sociopolíticas, é assim que a organização Rejane Maria faz a “ciranda girar” e permanecer conectada durante esses quase 10 anos de existência. É através de recursos filantrópicos que muitas dessas atividades ganham forma. No entanto, esse modelo de captação, muitas vezes ligados a uma sistemática de desigualdades que atinge a dinâmica de distribuição dos recursos, dificulta a sustentabilidade de várias Organizações da Sociedade Civil (OSC), principalmente as de pequeno porte.
“É uma área que quem conhece mais é quem já tem acesso, quem trabalha em organizações com setores estruturados de captação de recursos. Isso acaba impactando o acesso de novas organizações pequenas, porque exige uma técnica que nós do Rejane, por exemplo, não temos”, opina Clarissa Marques, integrante da Auto-organização Rejane Maria.
Palavras que se conectam com a de Rosana Fernandes, assessora de Projetos e Formação, da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), que também atua apoiando projetos de movimentos populares. “Existem obstáculos no campo filantrópico, como, por exemplo, formulários imensos em inglês que precisam ser lidos e respondidos para que essas organizações elaborem seus projetos, o que demonstra uma insensibilidade por parte de quem doa os recursos.”
Obstáculos
Os obstáculos no acesso de organizações negras a apoios mais robustos falam sobre um cenário preocupante que firma o retrato de um país ainda amplamente descompromissado com o enfrentamento ao racismo. “São poucas organizações lideradas por pessoas negras, como é uma área muito restrita depende muito de relacionamentos, as organizações negras são meio outsiders nessa área”, observa Clarissa frente às disparidades que se apresentam em números e confirmam que territórios periféricos no Brasil – compostos por maioria negra – são os principais alvos dessas desigualdades.
A pesquisa “Periferias e Filantropia – As barreiras de acesso aos recursos no Brasil”, realizada pela Iniciativa Pipa em parceria com o Instituto Nu, mapeou mais de 1000 ações nas cinco regiões brasileiras, que se dividem da seguinte forma: 36% atuando em territórios de povos tradicionais, e 64% não. Do total, 31% atua nas capitais; 30%, no interior e na capital; 29% apenas no interior, e 10% em mais de um estado. Os resultados referentes a doações recebidas por essas OSCs em 2022 foi:
- 31% dos gestores de organizações disseram ter recebido menos de R$ 5 mil;
- 24% receberam de R$5 mil a R$25 mil;
- 17% de R$25 mil a R$100 mil, e
- 15% não receberam recursos.
Do outro lado, a 11ª edição do Censo GIFE 2022/2023 destacou que a questão racial é trabalhada majoritariamente (55%) de forma transversal do que diretamente pelos investidores sociais em seus projetos e programas. Ou seja, apesar das questões de raça estarem inseridas em algumas práticas, não são o objetivo principal da iniciativa. O levantamento também apontou os principais focos de atuação das organizações filantrópicas para onde os recursos são direcionados. A “Educação” apareceu em 1º lugar com 33%, enquanto que setores como “Defesa de direitos, cultura de paz e democracia” e “Desenvolvimento local, territorial e/ou comunitário”, receberam 9% de atenção, já “Desenvolvimento institucional de OSC e movimentos sociais” pontuaram com ínfimos 4%. No quesito territórios de ação direta, comunidades quilombolas, indígenas e áreas de assentamento, ocuparam os três últimos lugares, com 10%, 7% e 3%, respectivamente
Realidade que de acordo com Naiara Leite, coordenadora executiva do Odara – Instituto da Mulher Negra, precisa ser transformada através de um real comprometimento por parte do setor filantrópico, que deve levar em consideração as complexidades sociais resultantes das dimensões históricas, culturais, coloniais que formam a sociedade brasileira. “Porque se a gente não faz isso, se a filantropia não faz isso, ela, por exemplo, vai se deparar com aportes financeiros e apoio para o Brasil, mas que não vão alcançar mulheres e meninas negras, mulheres trans negras, mulheres indígenas, o público LGBTQIA+.”
Naiara lembra a importância de se considerar as dimensões continentais que o Brasil possui, e da necessidade dos financiadores focarem em monitorar e conhecer os diversos contextos. “E é isso, são Brasis dentro de um país com dinâmicas estruturantes, relações de poder completamente diferentes.”
Em um país como o Brasil, onde as mulheres negras são o maior grupo demográfico, de acordo com o IBGE, Rosana Fernandes reitera os avanços que ainda precisam ser abraçados pelo terceiro setor. “A filantropia precisa atuar a partir de um recorte de raça e de gênero, é importante que se perceba que as pessoas que estão na base da pirâmide são as mulheres negras.”
Realidade reforçada pelos dados do Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdade (Ceert), que aponta que cerca de 41,5% das mulheres negras no Brasil estão subutilizadas no mercado de trabalho.
“É importante abrir espaço para o protagonismo das organizações negras, no sentido da interlocução junto aos financiadores. Para que se perceba que essa interlocução precisa ser feita por homens e mulheres negras que conhecem a realidade e que podem responder com mais propriedade a essas situações alarmantes de desigualdade”, finaliza Rosana.