Por Matheus Souza e Andressa Franco
“Na encosta da favela tá difícil de viver / E além de ter o drama de não ter o que comer /Com a força da natureza a gente não pode brigar / O que resta pra esse povo é somente ajoelhar / E na volta do trabalho a gente pode assistir / Em minutos fracionados a nossa casa sumir / Tantos anos de batalha, junto com o barro descendo / E ali quase morrer é continuar vivendo”
O trecho acima é da música “Firme e Forte”, da banda Psirico, que denuncia e retrata a dura realidade da periferia de Salvador (BA). Formada majoritariamente por pessoas negras, essa população, além de enfrentar diversos desafios socioeconômicos, ainda precisa lidar com a falta de infraestrutura para resistir às fortes chuvas e enchentes que atingem a cidade todos os anos.
Os alagamentos, deslizamentos, desalojamentos e mortes provocados pelos temporais são parte de um problema muito maior, em que o Estado relega as populações negras e periféricas às zonas degradadas das cidades. Sem pavimentação, saneamento básico, acesso à água, obras de urbanização e sofrendo com a insegurança alimentar, essas pessoas vivem em um ciclo de ausências. Os problemas decorrentes dessa crise, têm sido caracterizados como racismo ambiental.
O dia 5 de junho foi escolhido internacionalmente como o Dia Mundial do Meio Ambiente, com o objetivo de promover a conscientização sobre a preservação da natureza e as consequências das práticas que desmatam e poluem as matas, mares e rios planeta afora. A ineficiência do Estado em promover uma gestão preocupada com essas questões acaba por aprofundar problemas históricos que assolam, principalmente, a população negra.
Um estudo realizado pelo Instituto Pólis, intitulado Injustiça Socioambiental e Racismo Ambiental (2022), mostra como os efeitos da crise ambiental nas cidades brasileiras aparecem de forma territorialmente desigual, atingindo as populações urbanas desproporcionalmente a depender do grau de vulnerabilidade e marginalização desses grupos. A pesquisa também ressalta a necessidade de direcionar as atenções e ações para as comunidades mais afetadas pelos desastres ambientais, agravados pelas mudanças climáticas.
Raquel Ludermir, gerente de incidência em políticas públicas da Habitat Brasil, que trabalha na promoção da moradia como direito humano fundamental, explica que o fato dessas pessoas terem tido que recorrer a áreas ambientalmente frágeis é um dos aspectos que faz com que hoje elas estejam mais sujeitas aos impactos da crise climática.
“A mesma chuva que em alguns locais vai afetar o dia a dia e fazer com que algumas pessoas precisem trabalhar de home office, em muitos outros causa perdas de vida, gerando impactos muito maiores, sejam materiais, sejam não materiais, como os relacionados à saúde mental”, afirma.
Layanne Paixão, diretora geral da TETO Brasil, explica que a relegação dessa população às zonas periféricas e mais pobres das cidades é parte da construção do Brasil enquanto nação. “As pessoas escravizadas precisaram encontrar um lugar para construir suas casas, seus próprios territórios. Hoje, mesmo com avanços pontuais de políticas habitacionais, que muitas vezes não alcançam esses indivíduos, a raiz da desigualdade ainda não foi enfrentada”, conta.

A denúncia de Layanne nos faz voltar para 1850, quando a Lei de Terras – primeira legislação do país nesse sentido – foi criada pelas elites econômicas e políticas como forma de impedir o acesso à terra por pessoas negras recém-saídas da escravidão. Às vésperas da abolição, a nova legislação estabeleceu que a única forma legal de obter terras seria por meio da compra, e excluindo da posse aqueles que, após anos de exploração, não tinham recursos para adquiri-la. Ainda hoje, uma mulher negra levaria 184 anos para comprar uma casa própria em uma favela brasileira, segundo levantamento da Habitat Brasil.
Donas de casa, sem casa
Segundo dados do Dieese (2023), das 11 milhões de famílias de chefia feminina com filhos e sem cônjuge, 62% são chefiadas por mulheres negras. Porém, mais de 40% delas não possuem acesso à rede de esgoto, enquanto nas famílias de mulheres brancas esse número é de 26,7%, informa o IBGE (2022). A ausência de coleta de lixo atinge 8,8% dessas famílias negras, contra 3,7% nas famílias brancas. No abastecimento de água, 3,9% das mulheres negras nesse contexto possuem o acesso, em comparação com 9,4% das brancas.
Ainda segundo o IBGE, a cada 100 domicílios particulares no Brasil, 13 estão vagos, o que representa 11,4 milhões de casas e apartamentos vazios. Entre 2020 e 2021, mais de 19 mil famílias foram removidas de suas casas e 93 mil correm o risco de serem despejadas. Na Bahia, segundo dados do Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC), foram identificados 48 conflitos fundiários, e mais de 5.100 famílias ameaçadas de remoção.
Frente a tais dados, Raquel reclama da dificuldade em apurar e realizar o cruzamento desses números, o que limita o mapeamento da situação de vulnerabilidade habitacional das mulheres negras no país. “A gente sabe a respeito do racismo ambiental, sabemos que a população negra, periférica e feminina é a mais afetada, mas ainda não possuímos dados cruzando a área de risco com a questão racial. Somente agora que conseguimos ter os dados do déficit habitacional desagregado por gênero, por exemplo.”

A cartilha Se essa casa fosse minha? Eu mandava ela morar, desenvolvida pelo CBJC, denuncia e detalha a crise habitacional no Brasil a partir da vivência de mulheres negras periféricas. Com base em dados, relatos e experiências coletivas, o documento mostra como o racismo estrutural, o sexismo e a desigualdade econômica impactam diretamente o direito à moradia digna.
“A gente tem um dos maiores déficits habitacionais em todo o Brasil e a ausência desse espaço de diálogo de habitação popular, dessa demanda, acaba afetando e muito a vida do nosso povo que mais precisa da moradia”, afirma Cleide Coutinho, dirigente do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM).

A ativista explica ainda que a falta de acesso aos serviços básicos traz um impacto muito maior sobre as vidas das mulheres negras. “[Este problema] traz muito mais impacto às nossas vidas, porque já temos uma saúde debilitada. Temos o histórico de trazer conosco doenças em relação à pressão alta, a diabetes. É algo hereditário e a ausência do saneamento, da água potável, da coleta de lixo, impacta muito.”
Cleide menciona ainda como a política pública de construção de unidades de moradia popular, acabam sendo realizadas em lugares extremamente afastados dos equipamentos públicos, dando continuidade à falta de acesso à serviços básicos que essas mulheres sofrem. “A distância que essas unidades habitacionais são construídas é um verdadeiro apartheid porque são distante de tudo e de todos. Fica distante do comércio, da escola, do posto de saúde, de creches, do transporte. É como o racismo atravessa o acesso à moradia”, afirma.
Construindo a luta
Tal panorama não será transformado sem apoio do poder público. Porém, na ausência dele, mulheres negras de todo o país se organizam de maneira independente na busca por soluções. Seja em redes de apoio locais, nas próprias comunidades, seja politicamente, atuando em grupos e coletivos. “Nós construímos as nossas próprias redes de cuidado. Somos nós que estamos ali na periferia e quando uma mãe sai, a vizinha toma conta dos filhos. A gente que socorre uma às outras”, ressalta Cleide.
O estudo Injustiça Socioambiental e Racismo Ambiental salienta que, quanto ao tema da “Igualdade racial”, deputadas mulheres, parlamentares negros e representantes de menor escolaridade demonstraram engajamento muito maior com a temática, em comparação a outros segmentos. Por outro lado, deputados homens e brancos foram avaliados como os mais avessos ao tema. Cleide, por exemplo, foi candidata à reeleição para o cargo de vereadora em 2022 através do coletivo Pretas por Salvador, porém, não conseguiu número de votos suficiente.
A ativista aponta que o MNLM tem participado das conferências municipais para debate da regularização fundiária e acredita que o tema vai chegar com muita força nas conferências estaduais. “Não tem como construir um debate sobre as ameaças de despejos sem o debate da regularização fundiária. Antes de pensar em construir casas, é preciso pensar nessas áreas que a gente ocupa e realizar a regularização fundiária. Acredito que esse é o sonho de todas as pessoas que ocupam um pedaço de chão”, explica.
Inserir mulheres negras, quilombolas, indígenas e demais representantes de grupos historicamente marginalizados e silenciados nessas discussões e espaços políticos, é parte fundamental na busca por uma política habitacional mais ética, justa e democrática. É preciso questionar o atual modelo de gestão governamental, sua distribuição de bens e serviços e a preservação dos recursos naturais na prevenção do aprofundamento de tais problemas.