Presidente da ANTRA, Simpson responde ainda sobre as perspectivas de trabalho da organização com o governo Lula
Por Andressa Franco
Imagem: Acervo Pessoal
No último dia 15 de dezembro, o conselho da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) aprovou por unanimidade o título de doutora honoris causa à ativista LGBTQIA+ Keila Simpson, de 57 anos, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Assim, Keila se torna a primeira travesti do Brasil a receber a comenda.
“Aqui é a metade do caminho. A máxima ‘nossa vingança é envelhecer’ foi atualizada com sucesso”, agradeceu a ativista em suas redes sociais. No perfil da Antra, o desejo manifestado em uma publicação era de que a ação inspire outras universidades a “reconhecer as contribuições e potências de nossas ancestralidades e legitimem as doutoras que já reconhecemos por suas lutas”.
A qualificação é atribuída a personalidades, nacionais ou estrangeiras, que se destacam por contribuições à cultura, educação ou cidadania. Keila é mulher negra, pioneira no combate ao HIV, e desde 2004 está à frente da gestão da Antra. Ela foi presidente do Conselho Nacional de Combate à Discriminação de LGBT em 2013, quando recebeu da então presidenta Dilma Rousseff (PT) o Prêmio Nacional de Direitos Humanos pelos relevantes serviços prestados à população LGBTQIA+ do Brasil.
Desde o início dos anos 90, diversos grupos e movimentos se articularam visando organizar as demandas da população trans e travesti no Brasil. Foram várias tentativas para que se formasse uma rede nacional. O que culminou na criação da ANTRA, antes Rede Nacional de Travestis e Liberados – RENTRAL, sigla originada do Encontro Nacional de Travestis e Liberados que Atuam na Prevenção da Aids – ENTLAIDS.
Em entrevista para a Afirmativa, Keila fala sobre o significado da conquista e da relação entre a população trans e o espaço acadêmico. Explica ainda o que esperar da atuação da Antra durante o governo Lula (PT) na próxima gestão federal.
Revista Afirmativa: Qual o significado de, pela primeira vez na história do país, uma travesti ser titulada doutora honoris causa?
Keila Simpson: O Brasil vive um paradoxo nesse momento. Se por um lado temos uma ascensão de pessoas trans em diversos espaços, conquistados na marra; por outro, há 13 anos o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Temos visto mulheres transexuais e travestis ocupando os parlamentos, pela primeira uma artista trans ganhou um Grammy Latino. E nessa cadeia de coisas positivas eu recebo por unanimidade o título de doutora honoris causa. São simbologias muito importantes para a gente continuar nas diversas esferas, e outras pessoas também possam almejar sucesso, inclusão. Reverbera a necessidade de pensar mais adiante, para que tenhamos outras pessoas trans doutoras. Seja honoris causa, seja passando por todas as etapas até chegar ao ensino superior. É muito dificultoso para as pessoas trans permanecerem no ambiente de estudo. O percurso da educação básica até o ensino superior é muito longo, muitos ficam pelo caminho. Mas nos últimos anos a gente tem visto pessoas trans com suas resistências dentro da universidade, se habilitando como doutoras e até pós-doutoras.
R.A.: Como você avalia o reconhecimento em um espaço acadêmico pelas contribuições para garantia de direitos da comunidade LGBTQIA+?
K.S.: Eu fiquei rememorando aqui por quantas universidades do Brasil eu já transitei participando de seminários, fazendo projetos, do norte ao sul do Brasil. E se esses campus acadêmicos me convidam, eu tenho alguma contribuição a fazer. Eu já participei de projetos de extensão, de pesquisa de diversas universidades inúmeras vezes. Então a titulação vem no reconhecimento que essas atuações, muito embora não estejam na grade curricular obrigatória do ensino superior, reverberam muito positivamente. E o que a gente deseja é que as universidades do Brasil reconheçam essas produções. Eu fico imaginando quantas outras pessoas também não fizeram esse papel de estar ali pensando junto com professores e pesquisadores, pra gente chegar no patamar que estamos hoje. Se a gente tem um panorama auspicioso para a população trans, obviamente tem uma cadeia de pessoas levantando esse debate, fazendo com que esses pensamentos possam atingir a população que está mais distante desse espaço. A partir dos anos 90 a gente começa a trazer esse debate para que as pessoas possam olhar para nossa população não somente pela ótica de um objeto sexual ou cultural. Para chegar ao pertencimento de sujeito de direito, precisamos estar em todos os espaços e níveis da sociedade: cultura, educação, segurança pública, trabalho. E isso reverbera hoje em 2022.
R.A.: Ainda considerando que se trata de um reconhecimento de um espaço acadêmico, a senhora acredita que aumenta o simbolismo desse título o fato de, por décadas, a transexualidade ter sido considerada um transtorno mental pela Organização Mundial de Saúde?
K.S.: Eu acho que a gente está provocando no lugar certo. Se você perceber o retrocesso que a gente vive no Brasil com relação a isso, esse próprio Brasil não ratificou ainda essa decisão da OMS. Mesmo sendo uma decisão internacional que reverbera positivamente sobre a nossa população. Vivemos num governo de completo apagamento de existência. Mas não fiamos chorando em casa. Reagimos ocupando espaços em cargos chaves por todo Brasil. Então eu acho que mesmo nas adversidades dos últimos anos conseguimos alçar possibilidades. É pouco ainda, mas estamos num momento de emancipação. A pesquisa vem nesse sentido também, evoluindo para esse processo que a gente está vivendo agora de receber títulos em vida, de continuar batalhando para que a educação formal seja mais inclusiva para a população trans. A gente precisa de fato nesse novo governo dialogar bastante sobre uma nova forma de fazer inclusão social, de olhar para as pessoas que estão mais distanciadas do processo de cidadania, e trabalhar para elas. É aí que estão as pessoas trans. E a academia ajuda bastante o movimento social a pensar criticamente sobre essas ações. Só dialogando diretamente nos níveis de governabilidade vamos fazer reparação, qualificar as pessoas para que tenham um emprego formal, e para que, caso ela não consiga, que tenha políticas de segurança para que estejam inseridas. É nesse combo: educação formal, pesquisa, movimentos sociais e governança das esferas de gestão, que está a emancipação.
R.A.: Como a ANTRA visualiza a possibilidade de diálogo enquanto organização da sociedade civil com a próxima gestão federal para alçar políticas para a população trans e travesti?
K.S.: A ANTRA é uma instituição apartidária. Mas descemos do apartidarismo porque compreendemos que era a barbárie contra a humanidade. O governo Lula é o um governo completamente tranquilo para todas as pautas? Não. Mas ele é de longe muito melhor do que o que estava aí. Se é que tínhamos alguma coisa. Participamos bastante do processo de transição, muitas vezes fomos convidadas e os pautamos com nossas demandas. Se elas entram ou não na governança é outro processo. Mas a gente tem certeza de que esse governo que está se formando pelo menos escuta, pondera, aceita críticas. Completamente oposto do governo que está acabando, que vira as costas, ataca, atiça, e não respeita nada nem ninguém. Nosso processo de movimento social é esse: apontar caminhos para inclusão. Temos a Carta da ANTRA ao presidente Lula e a equipe de transição de governo, com todas as nossas demandas, reivindicações e ponderações para as esferas de gestão nos diversos campos. Fizemos esse documento exatamente para ter em mente o que a gente precisa em nível municipal, estadual e federal. É um documento atemporal.
R.A.: Em seu texto de agradecimento, a senhora lembrou a máxima “nossa vingança é envelhecer”. Nesse sentido, quais as perspectivas futuras de trabalho da ANTRA para avançar nessa meta, considerando que o Brasil ainda é o país que mais mata travestis no mundo?
K.S.: A gente encerra um ciclo danoso de quatro anos de completo retrocesso do Brasil, e celebra que conseguimos com muita luta, garra e disposição depor um governo que estava atacando a nossa cidadania. Desejar que o governo que está entrando possa de fato ouvir e que a gente possa avançar. Estamos na metade do caminho, o restante do nosso trânsito na Terra é exatamente de inclusão, participação e colocar pessoas diversas em diversos campos para que passemos a falar mais de positividades e deixe as negatividades em menor escala. A gente vive ainda muito desigualmente, mas nos últimos anos a ANTRA se desfiou bastante, participou muito, fez muita coisa junto com outros movimentos sociais e foi extremamente importante. Então desejo que a gente continue praticando o lugar de escuta, e que a ANTRA nesses próximos quatro anos possa produzir mais para o Brasil, deixando um legado de possibilidades novas, para que as pessoas vivam com o minimamente aceitável nesse país.