Por Matheus Souza e Luana Miranda
O transporte público de Salvador (BA) reflete de maneira coerente o que é a cidade: desigual, perigosa e cara. Relegada a um sistema de transporte urbano que privilegia as zonas nobres e centrais da capital baiana, a população negra e periférica precisa elaborar sua rotina baseada nas linhas de ônibus que passam pela sua região. As comunidades no subúrbio ferroviário da cidade, em especial, possuem dificuldade em acessar outras zonas da capital.
Em maio deste ano, a prefeitura de Salvador anunciou o projeto do Teleférico do Subúrbio, chamado de Teleférico Mané Dendê. Ação que entra no pacote de obras realizadas pela gestão de Bruno Reis (UNIÃO), atual prefeito da cidade. O projeto chama a atenção por, ao contrário de obras anteriores, ser direcionado a uma zona periférica da cidade.

O governo federal atuou como fiador do município e viabilizou um empréstimo de R$ 728 milhões à prefeitura. A construção do modal tem a ambição de ligar a região do Subúrbio Ferroviário à BR-324, conectando os bairros de Praia Grande, Mané Dendê, Pirajá e Campinas de Pirajá às estações de ônibus, VLT e metrô.
“Temos uma cidade com topografia de altos e baixos, de relevo, de morros e vales. Então, qual é a grande dificuldade da população? É quem mora no alto, na encosta, sair e poder acessar modais como o teleférico e o BRT que estão correndo nos vales. O teleférico é ideal para isso. Ele encurta caminhos e facilita a acessibilidade”, afirma Tânia Scofield, arquiteta e urbanista, presidente da Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF), responsável pela construção do projeto.
No entanto, o que à primeira vista parece entregar apenas pontos positivos, se apresenta enquanto um dilema para às comunidades afetadas, com possíveis desdobramentos graves na vida ambiental, cultural e social. O Parque São Bartolomeu, localizado no bairro de Campinas de Pirajá, está no centro das discussões sobre a obra, já que parte das estruturas de sustentação do empreendimento serão instaladas lá. Além de integrar uma Área de Proteção Ambiental (APA), o local é considerado sagrado entre as religiões de matriz africana e é comumente utilizado como território de fé e memória.

Ataque ambiental e religioso
O Instituto Trilha das Flores, movimento ambiental reconhecido pelo programa Homem e a Biosfera, da UNESCO, e vencedor do prêmio Muriqui (principal prêmio cedido a instituições atuantes na mata atlântica), envolve a comunidade de Pirajá e outros bairros de Salvador em atividades voltadas à ecologia e educação ambiental. A instituição tem se posicionado contra a realização da obra, alegando que há uma “completa falta de conhecimento” por parte da prefeitura sobre o Parque São Bartolomeu.
“[O posicionamento da prefeitura] evidencia a má fé e mau caráter quando dizem que não haverá nenhum tipo de dano ambiental. Até onde foi avaliado, o empreendimento terá suas pilastras suspensas na área de proteção das nascentes que alimentam a última cachoeira potável de Salvador. Inclusive, o parque possui três espécies de pássaros que estão na lista de animais sob risco de extinção”, afirma Glauber Machado, coordenador do instituto.
Entre os críticos ao projeto, a vereadora Marta Rodrigues (PT) tem manifestado sua oposição de maneira recorrente nas mídias e na Câmara. Segundo ela, há uma grande preocupação a respeito dos possíveis impactos negativos da construção do teleférico, principalmente sobre comunidades tradicionais e territórios de importância histórica e religiosa para a população negra de Salvador. “A possibilidade de prejuízo à Cachoeira de Oxumarê, no Parque São Bartolomeu, é uma questão gravíssima. Estamos falando de um local sagrado para o candomblé”, afirma a vereadora.

Segundo Marta, apesar da cidade precisar de investimentos em transporte público de qualidade, isso não pode ser feito às custas do apagamento de memórias coletivas e da degradação ambiental. Ela pontua ainda que o projeto não foi discutido de forma aprofundada na Câmara, e que a obra está sendo conduzida de maneira “unilateral, sem consulta prévia, livre e informada”.
Entre os possíveis danos do projeto listados pelo movimento ambiental, estão: a poluição da nascente da Cachoeira de Oxumarê; impacto na estética do parque; e risco de desmatamento. Segundo Glauber, a prefeitura, através da FMLF, ignorou todos os pedidos de acesso à informação e tentativas de diálogo. “Não existe conversa com esta senhora ‘dona’ da FMLF [referindo-se à Tânia Scofield], visto que isto poderia evidenciar mais problemas. Por isso, expomos o descaso, o racismo ambiental”, explica.
Outro recurso ambiental que pode ser afetado pela obra é o Rio Mané Dendê. A gestão municipal alega que tem drenado e recuperado o esgoto recebido pelo rio, mas Glauber afirma: “O Rio Mané Dendê continua poluído e com lançamento de esgoto, logo essa informação que está despoluindo não condiz com a realidade.”

O coordenador do Instituto Trilha das Flores ainda salienta que há, por parte da prefeitura, um descaso a respeito dos impactos culturais e religiosos que a instalação do modal pode ocasionar. “Tânia [Scofield] tem uma postura de ignorar e desconsiderar fatores culturais e religiosos. Ela tem algum problema com nosso espaço religioso, e fica claro suas inúmeras tentativas em desconstruir este espaço. Postura lamentável”, relatou Glauber.
O que diz a Prefeitura

Detalhando o projeto, Tânia Scofield afirma que o modal terá 27 torres por onde passarão os cabos de sustentação. Ela aponta que o projeto está fechado e o próximo passo é enviar para a superintendência de obras do município, que de acordo com a arquiteta, irá divulgar. A previsão é de que as obras tenham início em 2026.
Apesar de afirmar que o projeto já está pronto e em processo de orçamento, segundo Tânia, a FMLF ainda não recebeu os primeiros produtos do estudo ambiental do projeto. “Todos os detalhes e estudos necessários que vão tratar o impacto ambiental, estão sendo elaborados. Acho que mais dois meses e a gente estará com tudo isso na nossa mão.”

Mesmo sem nenhum estudo ambiental em mãos, a presidente da fundação nega que o projeto representaria riscos ambientais para o Parque São Bartolomeu e as nascentes presentes nele. “Nós [o projeto] estamos afastados dessa nascente. Se tem uma área que eu conheço bem, é aquela área ali [do parque São Bartolomeu], porque trabalhei em toda primeira etapa do projeto do Mané Dendê”, se referindo ao programa da prefeitura voltado à revitalização do rio.
Sobre as torres, ou pilastras, que serão instaladas no local, a presidente explica que serão duas no total: uma na área do parque, e uma segunda pilastra, em uma região próxima, onde há um campo de barro que a população local utiliza para prática esportiva. “Então, nada que comprometa”, defende.
Já sobre a falta de diálogo apontada pelas comunidades afetadas pela obra, Tânia explica que ainda não há uma equipe multidisciplinar para tratar das questões sociais do projeto e estabelecer uma conversa com a população. Ela afirma que um escritório será contratado ainda este ano para ajudar neste processo. “Mais uns 20 dias e então poderemos abrir a licitação para contratar a empresa, mas precisa ser antes do início das obras. Quando iniciada, toda a população da área beneficiada tem que ter o absoluto conhecimento do que é o teleférico.”
Especialista destaca riscos
A fim de entender melhor os possíveis impactos que a obra pode causar, tanto à nível ambiental quanto cultural e social, conversamos com a professora Elisabete Pereira dos Santos, doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas (Unicamp) e especialização em Desenvolvimento Regional e Políticas do Meio Ambiente pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Elisabete também pesquisa sobre política e gestão urbano-ambiental, gestão de serviços públicos, política ambiental e das águas, sustentabilidade, políticas públicas e direito à cidade e indicadores urbano-ambientais.
A professora explica que, apesar da cidade precisar de intervenções urbanísticas que melhorem a mobilidade urbana, tais mudanças não podem ser realizadas de maneira a prejudicar aspectos culturais e históricos dos locais e comunidades afetadas. Elisabete explica que tal discussão não pode ser feita “de faz de conta”, que, segundo ela, é o que acontece quando o poder público realiza audiências públicas, apresenta o projeto já pronto, esperando que a população concorde com o que está sendo apresentado.

“A prefeitura tem dito que a construção será aérea e não trará impacto ambiental. Não é verdade que uma estrutura desse tipo não produza impacto – quais estudos estão sendo realizados, que tipo de ação está sendo prevista para mitigar os impactos que certamente trará?”, questiona a pesquisadora.
O fato do Parque São Bartolomeu ser parte de uma APP condiciona e restringe os usos do espaço – exatamente como medida de preservação. A professora explica que esse tipo de equipamento existe em várias cidades, mas nesse caso específico é necessário se atentar à necessidade de estudos que identifiquem os impactos da intervenção, envolvendo a obra e também a futura operação do equipamento.
“É preciso estar atento aos riscos associados ao desmatamento, assoreamento de rios e fontes, ameaça à fauna, descaracterização da paisagem, geração de ruído e de resíduos, além do impacto na ocupação e uso do solo, com consequências em relação a práticas culturais e religiosas no Parque e no seu entorno”, explica a pesquisadora salientando que a nossa legislação tem instrumentos de avaliação de impacto. “É preciso fazer estudos e tomar as decisões corretas”, complementa.
A professora finaliza explicando que há muito a perder se o poder público não cumpre a legislação: “O que está em jogo é a preservação de um patrimônio ambiental, cultural e religioso inestimável. Se não fizermos isso agora, as futuras gerações saberão cobrar isso de todos nós.”
É importante salientar que o debate a respeito do projeto do teleférico tem sido posto para a esfera pública, não pela administração do município, mas a partir das manifestações de organizações da sociedade cívil, da imprensa e de agentes políticos. A população, de maneira geral, até o momento não está sendo convocada pela gestão municipal a participar da construção desse novo meio de transporte que supostamente a beneficiará.
Como bem nos lembra Antonio Bispo dos Santos, o mestre quilombola Nêgo Bispo, está na hora de substituir “desenvolvimento”, “a palavra boa é envolvimento”.