OPINIÃO: É preciso mudar a fotografia da Comunicação Pública no Brasil

Mulheres negras brasileiras têm, ano após ano, afirmado a necessidade de “mudar a fotografia do poder” no Brasil. Esse é um imperativo democrático que não pode mais aguardar e tem no mandato de Lula

Paulo Victor Melo*

Imagem: Joel Zito/Reprodução

Mulheres negras brasileiras têm, ano após ano, afirmado a necessidade de “mudar a fotografia do poder” no Brasil. E fotografia, aqui, não diz respeito apenas à imagem, mas a um conjunto de aspectos estruturais das instituições. Esse é um imperativo democrático que não pode mais aguardar e tem no mandato de Lula, que se iniciará em 1 de janeiro de 2023, a possibilidade de tornar-se prática. 

Como escreveu a socióloga e ex-Ouvidora Geral da Defensoria Pública da Bahia, Vilma Reis, “estamos numa batalha considerando aquilo que o mundo espera. A luta é para mudar a fotografia do poder e mudar o jeito de fazer a gestão pública. É colocar o nosso povo no orçamento”.

Na Comunicação Pública, que está inscrita no artigo 223 da Constituição de 1988 como um dos sistemas de comunicação a serem efetivados no Brasil, é igualmente fundamental mudar a fotografia. E, considerando que estamos falando de comunicação, vale frisar: é preciso alterar não apenas a representação “em tela”, mas também nas instâncias diretivas e nas políticas adotadas.

Dito de outro modo, uma Comunicação que se pretenda verdadeiramente pública e, portanto, democrática não pode prescindir de ser diversa racialmente nas imagens que transmite, nas pessoas que produzem conteúdo e também nas mulheres e homens que ocupam funções e cargos estratégicos.

Aqui, um rápido parênteses, mas não mero detalhe: a Comunicação Pública está destruída no Brasil.

Poucos anos após ser criada, justamente durante o mandato presidencial de Lula, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) entrou, a partir do governo golpista de Michel Temer e agravado na gestão Bolsonaro, num processo que oscilou entre o abandono e o aparelhamento, entre o descaso a censura, entre a negligência e as tentativas de privatização, afetando severamente o seu caráter público e a sua importância para a democratização do país.

Algumas evidências disto: extinção do Conselho Curador, deixando a sociedade civil sem qualquer participação na gestão dos meios de comunicação da EBC; fim da inviolabilidade do mandato do(a) diretor(a)-presidente da empresa, condição necessária na perspectiva de autonomia editorial frente aos governos; cortes orçamentários; suspensão de programas; definição de uma linha editorial diretamente comprometida com os interesses da gestão presidencial; esvaziamento do Comitê Editorial de Jornalismo; unificação da programação da TV Brasil (emissora pública) com a da NBR, televisão estatal; dentre outras.

No que diz respeito às ações de silenciamento e instrumentalização, vale citar que, de acordo com a 3ª edição de um relatório produzido pela Comissão de Empregados da EBC e por sindicatos representativos dos(as) trabalhadores(as), foram registrados, apenas entre julho de 2020 e agosto de 2021, 161 casos de censura e 89 de governismo em emissoras de televisão, rádios, sites e agência de notícias vinculadas à EBC.

Feito este parênteses de contextualização, é preciso resgatar a EBC aos seus princípios fundantes, sendo dois dos mais relevantes o entendimento da Comunicação Pública como “expressão maior das diversidade de gênero, étnico-racial, cultural e social brasileiras, promovendo o maior diálogo entre as múltiplas identidades do país” e como mecanismo de “universalização dos direitos à informação, à comunicação, à educação e à cultura, bem como dos outros direitos humanos e sociais”.

As aspas acima são trechos do “Manifesto pela TV Pública independente e democrática”, documento resultante do I Fórum Nacional de TVs Públicas, realizado em maio de 2007, que reuniu representações de emissoras públicas, educativas, culturais, universitárias, legislativas e comunitárias, além de organizações da sociedade civil, movimentos sociais, trabalhadores(as) da cultura, cineastas, produtores independentes, grupos de pesquisa e uma diversidade de gente que reconhece a importância da Comunicação Pública para o país.

Foi deste Fórum que saíram as principais sugestões para a criação da EBC meses depois, quando o presidente era Lula e o ministro da Cultura era Gilberto Gil.

Mais de uma década e meia depois, Lula terá a oportunidade de refundar a Comunicação Pública brasileira, fazendo com que a EBC reassuma seus compromissos com a diversidade cultural, a justiça socioambiental, o combate ao autoritarismo e a luta antirracista.

E a condução deste processo exige um perfil que, ao mesmo tempo, conheça a EBC, entenda sobre comunicação pública, tenha compromisso com a garantia da diversidade e reúna condições de articulação com diferentes segmentos – trabalhadores(as), produção cultural, sociedade civil.

Neste sentido, não me parece haver nome mais adequado que o de Joel Zito Araújo para o cargo de diretor-presidente da Empresa Brasil de Comunicação, como indicado esta semana por um conjunto de entidades da sociedade civil e um grupo de trabalhadores(as) da EBC.

Para citar apenas duas obras do cineasta e pesquisador Joel Zito que são fundamentais quando falamos na relação entre comunicação (inclusive pública), democracia e diversidade, deveria ser obrigatoriedade nas escolas públicas e nos cursos de Comunicação Social o livro O Negro na TV Pública, por ele organizado em 2010, e o filme A Negação do Brasil, por ele dirigido e lançado uma década antes, no ano 2000.

Com Joel Zito – homem negro, doutor em Ciências da Comunicação, com pós-doutorado em Cinema, Rádio e TV na Universidade do Texas, referência para gerações de jornalistas, cineastas e ativistas, e que já foi integrante do Conselho Curador da EBC – a fotografia da Comunicação Pública no Brasil tem, como nunca na história, a possibilidade de mudar efetivamente.

Paulo Victor Melo é professor e pesquisador de políticas de comunicação em universidades no Brasil e em Portugal, onde também realiza um estágio pós-doutoral no Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa. Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e do Grupo de Pesquisa Comunicação Antirracista e Pensamento Afrodiaspórico da Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Coordenador do GT Políticas e Governança da Comunicação da Compolítica – Associação Brasileira de Pesquisadores(as) em Comunicação e Política.

*Agradeço ao amigo Gésio Passos, trabalhador da EBC, pela revisão do texto.

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