Por Marry Ferreira / Imagem: Todd Dudek
Já faz algumas semanas que algumas regiões dos Estados Unidos viram os casos de COVID-19 cair e entraram em fases avançadas de abertura. Apesar de regiões como Texas e Flórida ainda apresentarem dados altíssimos, estados como Nova York e Nova Jersey já permitem o funcionamento de restaurantes ao ar livre e passeios nos parques, desde que se mantenha o distanciamento social e o uso de máscaras. Os dois últimos estados que, em abril, viam dados como 2,800 novos casos de COVID19 e mais de 700 mortes por dia, hoje veem em torno de 600 novos casos e 3 óbitos diários. Em diversos lugares, a linguagem do “novo normal” começa a aparecer e, junto com ela, as agendas lotadas, o estímulo a superprodução e uma tentativa de normalizar incertezas e, ouso dizer, as injustiças expostas pelo COVID-19.
Sem uma cura eficaz comprovada e com uso em larga escala, muitos, desde políticos e mídia a amigos e familiares, perpetuam essa retórica enquanto imaginam uma vida sob esse “novo normal”, onde a sociedade voltará a enfrentar e gerenciar problemas “não inéditos” – diferentemente dos enfrentados durante uma pandemia. “Sim, pode haver desafios de saúde pública, mas não enfrentamos esses problemas desde sempre?” “Muitas pessoas tem perdidos seus empregos, mas não seria essa uma crise bem antiga?” À medida que avaliamos essas perguntas que surgem, principalmente por parte de uma elite branca, vemos como as respostas visam continuar a manutenção de um status quo, evocando um mundo que continuaria a não funcionar para a maioria da sociedade.
Nesse cenário, fica a pergunta: o que era exatamente normal antes e durante essa pandemia? Não é normal que a sociedade em massa fique em distanciamento social, que coletivos negros precisam se mobilizar para garantir direitos de sua comunidade na ausência do Estado, e nem que trabalhadores de aplicativos de entrega, no meio de uma pandemia, precisem ir às ruas para lutar por direitos e melhores condições de trabalho. No contexto dos EUA, também não é normal que o 1% mais rico possuísse mais de 40% da riqueza do país – e que os 5% mais ricos levassem para casa quase um terço de toda a renda, enquanto 40% dos estadunidenses precisariam tomar emprestado, vender algo ou não conseguir pagar uma despesa de $400. Seis meses atrás, antes do coronavírus atingir este país, era “normal” que quase um quarto da força de trabalho civil norte-americana não pudesse tirar um dia de licença médica remunerada e que um sistema de reparações pela escravidão estivesse longe de ser colocado em prática. Nesse período, o descaso dos Estados Unidos com o aquecimento global também parecia mais ou menos correto para alguns norte-americanos. Não foi há muito tempo que eu escrevi aqui, na Revista Afirmativa, que 44% dos(as) afro estadunidenses perderam ou conhecem alguém que tenha perdido o emprego/salário durante a pandemia e que 73% delas(es) também não possuem fundos emergenciais para cobrir três meses de despesas em caso de emergência, comparando com 47% em relação a pessoas brancas no país.
Nesse contexto dos Estados Unidos e, em muitos casos, do Brasil, o enquadramento do “novo normal” não apenas ignora esses dados e o luto que muitas pessoas negras estão passando, mas também deixa de fora o trabalho árduo de ativistas e organizações em um cenário que está longe de acabar. Somos nós, pessoas negras, que ainda estamos trabalhando incansavelmente para que um mundo “pós pandemia” seja um mundo mais justo. Somos nós que continuamos nos articulando todos os dias ao redor da Diáspora para que o impacto da pandemia seja menor em nossas comunidades – e isso inclui todos as demais regiões que ainda estão lutando contra o vírus e as históricas desigualdades sociais.
Se a instabilidade da pandemia já trás um esgotamento para todas(os) as(os) ativistas e pessoas comprometidas com os direitos humanos da população negra no mundo, as articulações do cenário atual e o desmonte do status quo intensificam esses impactos – e aqui eu não incluo os ativistas convenientes de sofá. Para além da discussão sobre rotinas de trabalho e adaptação a uma nova rotina, são os que estão totalmente comprometidos que, em um governo que reforça políticas de genocídio, se mantém na linha de frente, promovendo uma agenda antirracista e sentindo o impacto do sistema em suas vidas e na vida de suas comunidades.
Para estas pessoas, onde as mudanças nas políticas migratórias dos Estados Unidos, o descaso do governo brasileiro em implementar políticas de regulação da pandemia, a luta dos direitos reprodutivos e outras questões de justiça social importam, a pandemia está longe de acabar. À medida que pensamos em novas soluções e articulações pós-pandemia, temos a chance de reimaginar o mundo traçando uma história. No caso desse país que tem sido minha casa pelos últimos anos e cujo discurso presidencial afirma que o impacto do COVID-19 não foi tão intenso assim, como esperar uma postura solidária e colaborativa com regiões que ainda estão travando batalhas para controlar o vírus?
Os norte-americanos podem estar desejando que o vírus desapareça em breve, mas embora o surto tenha diminuído em alguns estados, no resto do país ele ainda parece estar fora de controle. Uma rápida olhada no Covid Exit Strategy, um site que rastreia o progresso de cada estado em direção à redução de sintomas e casos, prontidão do sistema de saúde e aumento de testes, revela que muitos estados não estão realmente atingindo as etapas de reabertura sugeridas por especialistas em saúde pública.
Os Estados Unidos tiveram a vantagem de serem atingidos pelo vírus depois de muitos outros países na Europa e Ásia, mas ainda assim ignoraram vários sinais para tomar medidas antecipadas. Em uma reportagem do The New York Times, os epidemiologistas Britta L. Jewell e Nicholas P. Jewell afirmaram que se as políticas de distanciamento social tivessem sido implementadas no país apenas duas semanas antes em março, 90% das mortes cumulativas por coronavírus nos Estados Unidos durante a primeira onda da pandemia poderiam foram evitados. Um relatório de tendências de movimentação durante a pandemia de COVID-19 também mostrou que os estadunidenses nunca ficaram tanto em casa quanto os Europeus (grupo com os quais os Estados Unidos adora se comparar).
Agora, para muitas pessoas, a pandemia e todas as desigualdades expostas por ela não parecem mais uma questão nacional urgente. No entanto, o sistema de saúde continua sendo inadequado para lidar com crises nacionais de saúde, as disparidades preexistentes na saúde continuam existindo e até a Força-Tarefa Coronavirus do governo reduziu suas atividades.
É verdade que os norte-americanos estão fingindo que a pandemia acabou, mas nesse mesmo caminho estão a mídia, as instituições, o governo e a elite branca do país que lideram esse discurso de preocupação com a economia e negligencia com os impactos de uma possível segunda onda do COVID-19. Se o vírus vencer, é porque os Estados Unidos se recusa a aprender com o resto do mundo e com seus defensores de direitos humanos que estão liderando movimentos por justiça social em diferentes frentes. Dizem que as pandemias revelam o verdadeiro estado de uma sociedade. Nesse caso, não acredito que há muito mais para se esconder.