Pessoas negras são mais suscetíveis a acidentes em procedimentos médicos no Brasil, revela estudo

Pesquisa realizada pelo IEPS e Çarê revela que a prevalência de acidentes em procedimentos médicos é mais alta entre pessoas negras em quatro das cinco regiões do país

Pesquisa realizada pelo IEPS e Çarê revela que a prevalência de acidentes em procedimentos médicos é mais alta entre pessoas negras em quatro das cinco regiões do país

Por Karla Souza e Patrícia Rosa

Imagem: Paula Fróes/Governo da Bahia

No Brasil, ocorreram 66.496 internações relacionadas a acidentes ou incidentes adversos durante procedimentos médicos, entre 2012 a 2021, uma média de 5.541 internações por ano, ou 15 casos por dia. Neste período, a taxa de negros do Norte e do Nordeste do país internados por essas causas foram 6 vezes maior em comparação com as brancas. Os dados são do “Boletim de acidentes e incidentes adversos no período de internação, segundo raça/cor”. O cenário de disparidade se repete no Centro-Oeste (3,16) e Sudeste (1,65). Apenas no Sul (0,72) ocorre uma inversão dessa tendência. 

A iniciativa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e do Instituto Çarê, lançada em 23 de outubro, tem o propósito de levantar pesquisas e fornecer informações sobre a saúde da população negra.

O boletim aponta que as pessoas negras enfrentam um maior risco de vivenciar incidentes adversos, como erros na administração de medicamentos, cortes e perfurações acidentais durante o período de internação.

De 2010 a 2015, houve um aumento nas internações tanto para pessoas negras como brancas, com o ápice de ocorrências em 2015, totalizando 7.083 registros. A partir de 2016, essa tendência se inverteu, e em 2021, último ano analisado pela pesquisa, foram registradas 4.697 ocorrências. A diminuição nos registros a partir de 2016 pode indicar melhorias na gestão e prevenção dessas situações ou um aumento na subnotificação.

Necessidade de políticas públicas específicas para a população negra

A presença de disparidades nas taxas de internação destaca a importância de políticas  direcionadas, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), visando à redução de desigualdades e à garantia de acesso equitativo aos cuidados de saúde. Com essa perspectiva, o boletim Çare-IEPS conclui que o alcance de uma saúde mais justa e igualitária exige um compromisso contínuo com a pesquisa, a correção de problemas e o aprimoramento dos serviços de saúde. 

Para o cientista político e representante do IEPS, Rony Coelho, o resultado da pesquisa mostra a disparidade racial. Ele aponta que quanto mais dados qualificados com o quesito raça/cor são colhidos, mas aparecem as disparidades

“A gente já fez boletins sobre acidentes de moto, sobre mortalidade materna. O que chama bastante atenção é que para diversos temas a população negra sempre tem o desfavorecimento nos indicadores”, explicou Rony.

Rony Coelho é cientista político no IEPS – Imagem: Divulgação IEPS

Para o cientista político, fatores sociais como, renda, local de moradia, nível educacional, gênero e o racismo, são determinantes para essa realidade. “Isso cria uma série de barreiras ao acesso no serviço público.”

Caso de negligências muitas vezes são ignorados

O boletim enfatiza que, ao analisar tendências nas ocorrências de falhas e suas causas, é possível implementar ações corretivas, prevenir danos adicionais e promover a transparência e a responsabilidade. No entanto, em algumas situações, mesmo quando os profissionais de saúde têm conhecimento dos erros médicos cometidos, podem não adotar as correções necessárias, reconhecer o equívoco ou expressar desculpas pelo incidente médico.

Dona Marta Santos*, tem 76 anos, e faz parte da estatística de vítimas de erro em procedimentos médicos no Brasil. A idosa atuou como trabalhadora doméstica até os 73 anos, e interrompeu os serviços por conta de um problema de saúde. Diagnosticada com um quadro de hérnia abdominal, no ano de 2020, buscou atendimento médico em hospital da rede privada, em Feira de Santana (BA). O médico prescreveu uma cirurgia para solucionar a situação.

A paciente tentou fazer o procedimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), como não obteve sucesso, contou com o apoio de amigos, familiares e os ex-patrões para conseguir realizar a cirurgia em uma unidade de saúde especializada e privada. Após a cirurgia, era necessário utilizar um dreno na região operada por quinze dias. Durante esse tempo pós-cirúrgico, uma parte do tubo foi quebrada, ficando um pedaço do objeto dentro da paciente e ocasionando desconfortos.

Ao recorrer ao médico, que prescreveu a cirurgia, Dona Marta conta que foi informada que em um procedimento bem feito como aquele, não tinha como o dreno se soltar, e prescreveu um exame de ultrassonografia. 

“Quando voltei ao médico para apresentar o resultado, fui tratada com indiferença. Ele perguntou se eu estava perseguindo ele”, contou dona Marta.

Foi necessário passar então por uma segunda cirurgia para a retirada do objeto em 2021. A vítima conta que ao final do procedimento, o médico responsável pela negligência não devolveu o ultrassom onde mostrava uma parte do dreno deixado dentro do corpo dela, além de retirar a tela para hérnia abdominal – dispositivo que impede a formação de um novo escape do órgão – sem autorização da paciente. O dispositivo preventivo removido era uma das razões pela qual dona Marta precisava do procedimento médico, e a tela é instalada apenas no sistema privado.

Atualmente ela segue tomando medicamentos para conter as dores e inflamações causadas pelo quadro sofrido e preferiu não se identificar, com medo de retaliações. 

O racismo permeia o campo da saúde

Rose Santos, sanitarista e coordenadora da Política de Saúde da População Negra – Recife (PE), aponta que há um  modelo eugenista vigente dentro do campo da saúde. Para ela, o olhar eurocêntrico, racista para os corpos negros traduz todo um percurso de violações, violências, adoecimentos e morte de mulheres e homens negros. 

“Nós temos diversos elementos determinantes raciais e sociais que a gente pode levar em consideração para justificar os resultados desses dados, a partir do não acesso aos serviços de saúde do não acesso de qualidade às consultas, aos exames. Esses desafios são amparados e alicerçados no racismo estrutural”, reflete.

Rose Santos, sanitarista e coordenadora da Política de Saúde da População Negra – Recife (PE) – Imagem: Arquivo Pessoal

A bióloga e sanitarista entende que a desigualdade expressiva na nossa sociedade coloca os negros no lugar de não acesso, e a saúde é um dos campos mais frios e duros. Também elucida que existem diversos fatores que levam para um caminho de violações, de violências, de morbidade e mortalidade para a população negra.

“É  importante  a gente ampliar esse olhar,  trazer e direcionar, afrocentrar o olhar dessa população para a sua origem, para a sua identidade. Na saúde a gente tem várias práticas ancestrais”, finaliza Rose.

*Nome fictício para preservar identidade da fonte 

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