Taxa de analfabetismo no Nordeste é o dobro da média do Brasil, e Bahia mantém maior número de não alfabetizados do país

Professora explica que a população negra, em virtude das violências e opressões sofridas, teve o seu direito à educação negado, postergado ou interrompido ao longo dos anos

Por Andressa Franco

A Bahia não tem figurado bem nos últimos índices e pesquisas nacionais de educação. Em maio, foi divulgado o Mapa do Ensino Superior no Brasil 2024, que mostrou que a Bahia tem a 2ª pior taxa de jovens entre 18 a 24 anos do país matriculados no ensino superior, com 13,3%. Os resultados do estado só não são piores que o do Maranhão, onde a taxa é de 12,1%. O levantamento foi feito pelo Instituto Semesp, a partir de dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), de 2022. O Distrito Federal lidera o ranking do índice, chamado de taxa de escolarização, com a maior taxa (36,2%).

Mas os números negativos na Bahia começam desde a educação básica. De acordo com o Censo IBGE de 2022, o estado tem o maior número de analfabetos do país, com 1.420.947 pessoas de 15 anos ou mais que não sabem ler nem escrever. Posição que ocupa há pelo menos 31 anos. O levantamento constatou que a taxa de analfabetismo em 2022 era de 12,6%. 

Na verdade, em todo o Nordeste, o quadro preocupa. A taxa de analfabetismo na região é o dobro da média do Brasil: 14% não sabem ler e escrever.

Vale destacar que dados do próprio Censo revelam que a taxa de analfabetismo entre a população negra é mais do que o dobro da registrada entre os brancos. Enquanto o índice de pretos e pardos que não sabem ler e escrever é de 10,1% e 8,8%, o percentual entre brancos é 4,3%. 

Quadro é resultante de fatores históricos 

“Em pesquisa em andamento, tenho compreendido que fatores históricos, legais e de políticas públicas contribuem para a persistência desses dados como causas históricas e problemas estruturais”, pontua Marta Lima de Souza, Professora Associada II da Faculdade de Educação da UFRJ. 

A professora lembra que a população negra, em virtude das violências e opressões sofridas, teve o seu direito à educação negado, postergado ou interrompido ao longo dos anos, principalmente da segunda metade do século XIX até aqui.

O Estado Brasileiro, a partir da Constituição de 1824, garantia a escola como um direito de todos os cidadãos, classificação que não se estendia aos escravizados e negros. Ainda que libertos, era preciso ter rendimentos, posses e “a soma de oitocentos mil réis” para ter garantidos os direitos. A própria legislação do império afirmava que “negros não podiam frequentar escolas, pois eram considerados doentes de moléstias contagiosas”.

Marta Lima de Souza, Professora Associada II da Faculdade de Educação da UFRJ – Imagem: Arquivo Pessoal

Assim, Marta se apoia em referências como as escritoras Sueli Carneiro e Grada Kilomba, para defender que não se trata de anacronismo, mas de dispositivos de racialidade que se atualizam e reiteram a negação do direito à educação para a população não branca. O que já era denunciado pela intelectual e ativista Lélia González no Censo de 1950. A professora lembra que somente a partir da Constituição Federal de 1934 a educação torna-se um direito para a população negra, isto é, o acesso ao ensino primário. 

Hoje professora, Dona Cristina precisou interromper os estudos para trabalhar 

A pesquisa Juventudes Fora da Escola, do Itaú Educação e Trabalho e da Fundação Roberto Marinho, mostrou que 9,8 milhões de jovens de 15 a 29 anos, quase 20% da população nesta faixa etária, não concluíram a educação básica e não frequentam escolas no Brasil. A pesquisa tem como referência os dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, do IBGE de 2022. A maioria desses jovens (78%) são oriundos de famílias com renda per capita de até 1 salário-mínimo, e 70% são negros. A maioria deles (84%) faz parte da força de trabalho, sendo que destes, 67% estão na informalidade.

A professora Cristina Ferreira da Silva, mulher negra de 50 anos, conhece essa realidade de perto, tendo ela mesma a enfrentado. Nascida e criada em Irará (BA), ela passou a estudar à noite porque trabalhava em um supermercado para ajudar a família. Ela foi criada com sete irmãos, e quando seu pai adoeceu, a renda ficou ainda mais apertada.

Cristina Ferreira, conhecida como DONA EJA, em entrevista ao Canal Futura – Imagem: Reprodução

Com incentivo da mãe, voltou para a sala de aula aos 16 anos, na sétima série do Ensino Fundamental, durante o período noturno. “Eu trabalhava em pé o dia todo, e aproveitava a hora de almoço para fazer minhas atividades. Eu saía do mercado às 19h direto para a escola. Não foi fácil. A motivação era ajudar minha mãe”, lembra. Cristina só não encontrou maiores dificuldades na leitura e na escrita, porque era vizinha de uma professora, a quem acompanhava em aulas nas comunidades e pedia ajuda para aprender.

“Eu tinha vários motivos para desistir. Principalmente quando vi meu pai doente, minha mãe sozinha para sustentar a casa. Isso faz com que a gente acredite que não tem esperança. Que tem que deixar a escola e trabalhar. Mas minha mãe não deixou. Então essa professora que era minha vizinha, me ensinava as letras, a formar palavras”, relata, e lamenta seu irmão não ter tido a mesma oportunidade, já que não continuou os estudos para permanecer trabalhando. 

Hoje, a iraraense é mestre em educação de jovens e adultos, e doutoranda. Há 30 anos é professora da educação básica concursada na cidade, e milita pela Educação de Jovens e Adultos (EJA). Desde a Constituição Federal de 1988, a educação é reconhecida como direito fundamental de cada indivíduo, independentemente da idade. Mas as condições de ensino acessadas por essa parcela da população sempre inquietaram Cristina, que se tornou referência sobre o tema no município, ao coordenar turmas da EJA.

Na última quinta-feira (6), o Ministério da Educação lançou o Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo e Qualificação da EJA. O objetivo é superar o analfabetismo e elevar a escolaridade da população a partir de 15 anos que não tenha acessado ou concluído o ensino fundamental e médio.

Segundo a Pnad Contínua divulgada pelo IBGE em 2023, o percentual da população negra nessas condições é de 7,4%, mais do que o dobro da taxa encontrada entre as pessoas brancas, de 3,4%. Ainda de acordo com o MEC, o Programa Nacional do Livro Didático não comprava obras para a educação de jovens e adultos há nove anos.

“O governo acha que não deve investir nos adultos e idosos porque não darão retorno. Eles dão retorno sim, principalmente nas urnas. Então talvez exista intencionalidade no não investimento nesse povo.” argumenta Cristina, comentando que existe uma demanda muito grande no EJA, mas que os governos não querem investir nessas pessoas. 

Ela explica que o acesso à educação para jovens e adultos, além de ser importante para garantir a socialização, afeta desde questões cotidianas, como fazer uma feira no supermercado, até ter capacidade de entender os próprios direitos enquanto trabalhadores, que muitas vezes são explorados.

De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, dos resgates de vítimas de trabalho análogo à escravidão em 2022, 92% eram homens, 51% residiam na região Nordeste e 83% se autodeclararam negros. Quanto ao grau de instrução, 23% deles declararam ter estudado até o 5º ano incompleto, outros 20% haviam cursado do 6º ao 9º ano incompletos e 7% se declararam analfabetos.

“Se eles investirem, a educação vai melhorar. Mas se eles querem jogar nosso dinheiro na mão da iniciativa privada, como está acontecendo aí [no Paraná]”, acrescenta Cristina.

Disparidades regionais 

É fácil notar que as diferenças raciais e regionais andam juntas nesses índices. De um lado, estados do Nordeste – onde a maioria da população é negra – ocupam os piores índices da taxa de escolarização e entre números de alfabetizados; do outro, o Sul – cuja população branca chega a 72,6% – reúne os melhores números em ambos os dados. A região chega ao patamar de 96,6% de moradores que sabem ler e escrever.

Para Marta, a questão é complexa e implica em diversas variantes. Uma possível leitura apontada pela pesquisadora, seriam as desigualdades econômicas regionais construídas nos séculos anteriores como nos ciclos de café, mineração, cana de açúcar, nos quais houve uma prevalência em favor do Sudeste-Sul, do urbano em relação ao rural.

Além disso, o analfabetismo pode se perpetuar ao longo das gerações em famílias que enfrentam ciclos persistentes de pobreza. Quando os pais são analfabetos ou têm baixa escolaridade, é mais provável que seus filhos também tenham menos oportunidades de aprendizado. As consequências desse cenário são diversas.

Marta acredita que a importância primeira é de garantir a efetivação de um direito humano e, portanto, realizar uma reparação histórica para essas pessoas “que com seus trabalhos construíram e constroem os bens patrimoniais e simbólicos desse país, além de honrar os compromissos nacionais e internacionais na garantia de tais direitos independentemente de etnia, gênero, classe, região, idade etc”.

O segundo ponto destacado pela professora é que a efetivação do direito à educação amplia o exercício da cidadania e da garantia de outros direitos: saúde, trabalho digno, a não ser lesado ou enganado, participar da educação das crianças etc. 

Para garantir esse acesso, Marta sente falta do desenvolvimento de pesquisas que levem à compreensão do que gera a não efetivação da educação expressa em números ainda tão altos para os que não sabem ler nem escrever, bem como o que ocasiona as suas expulsões da escola.

“O poder público precisa questionar esses dados, investigá-los, tirá-los da invisibilidade e propor políticas públicas que busquem reduzi-los para a efetivação da educação básica para todos. Pois só haverá democracia de fato numa sociedade sem racismo”, finaliza.

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