Por Elis Freire
Assédio em ambiente institucional. Deslegitimação de candidaturas. Impedimento no exercício do poder. Repressão de atividades políticas. Essas são algumas das faces da violência política de raça e gênero que aflige candidatas, lideranças de movimentos sociais e mulheres eleitas no país.
Aprovada em 2021, a Lei 14.192 estabelece normas para o combate à violência política de gênero. Sem citar a questão racial dentre as diretrizes, a lei foi um primeiro passo no entendimento institucional desta forma de violência que restringe, inibe e agride o exercício dos direitos políticos das mulheres.
“Toda ação, conduta ou omissão com finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos de quem se identifica como mulher”, define a lei.
Monitoramentos realizados por institutos e organizações sociais no Brasil mostram que a violência política de raça e gênero está relacionada ao funcionamento político do país. Relações de poder expressas em desigualdade de recursos de campanha, discurso de ódio e desqualificação das mulheres são algumas das problemáticas relatadas.
“Dificuldade de acesso a financiamento de campanha, menor exposição na mídia ou exposição baseada no escrutínio de características comportamentais e atributos físicos, assédio sexual são algumas das questões que limitam a atuação das mulheres na vida pública, com um necessidade constante de reafirmar seu lugar como eleita e capaz”, elencou Michelle Ferreti, diretora do Instituto Alziras, organização fundada em 2017.
58% das prefeitas brasileiras em exercício afirmam já ter sido vítimas de violência política de gênero e 66% afirmam ter sido alvo de ataques, ofensas e discurso de ódio nas redes sociais, revelou o Monitor da Violência Política de Gênero e Raça. A ferramenta, lançada pelo Instituto Alziras em agosto deste ano, monitorou mais de 170 casos entre 2021 e 2023.
“A violência política de gênero e raça é certamente um empecilho. Para ocupar espaços de poder e de decisão na política institucional, as mulheres enfrentam uma verdadeira corrida de obstáculos”, complementa a diretora.
Interseccionalidade
Em relação às mulheres negras, que formam um coro de apenas 8% do Congresso Nacional de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os movimentos negros e sociais, sobretudo o de mulheres negras, têm traçado estratégias para uma participação política mais efetiva e para o combate às diversas formas de violência política de raça e gênero.
Pesquisa realizada pelo Instituto Marielle Franco, e encaminhada ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública no ano passado, apontou que 98% das parlamentares negras candidatas nas eleições de 2020 sofreram violência política de raça e gênero.
Para combater este número alarmante, organizações como o Observatório Feminista do Nordeste, Rede de Mulheres Negras do Nordeste, Elas no Poder e Instituto Alziras têm trabalhado pelo reconhecemimento do atravessamento interseccional da violência política, tendo a mulher negra como principal alvo no país. Diferente da lei em vigor desde 2021, as organizações sociais citadas reivindicam o termo “violência política de raça e gênero” como a melhor expressão para caracterizar o crime.
“Enquanto organização, a gente entende que essa violência política de gênero pautada em lei não dá conta da realidade das mulheres negras lideranças, parlamentares e candidatas, que nós conhecemos por pesquisas e vivências. Nesse sistema racista, essa violência tem como principal alvo as mulheres negras”, explicou Marília Gomes, co-criadora do Observatório Feminista do Nordeste e mestra em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco.
O Observatório Feminista do Nordeste realiza monitoramento legislativo e debates relacionados aos direitos das mulheres desde 2019, com foco nas candidaturas de parlamentares nordestinas.
Alvos políticos
Do exercício de poder em cargos públicos ao direito à liderança de comunidades tradicionais, a violência política de raça e gênero pode levar a assédio, ameaças, violência psicológica, sequestro e inclusive a morte.
Segundo o Monitor da Violência Política de Gênero e Raça, apenas 7% dos casos, monitorados entre 2021 e 2023, foram convertidos em ação penal. O Monitor aponta que as mulheres negras são as principais vítimas, mas a justiça não é aplicada e nem mesmo os julgamentos concluídos.
“A forma que mulheres, pessoas negras e LGBTQIAP+ são expostas e levadas ao máximo em sua autodefesa demonstra o requinte de crueldade do sistema político. Ele reduz as possibilidades de construção de pautas, pois a todo momento as representantes precisam acionar a justiça, nem sempre com resposta”, ressalta Thânisia Cruz, presidente da Elas no Poder, organização que tem como missão aumentar a participação de mulheres na política.
Para além das instituições
Um dos casos mais emblemáticos de violência política de raça e gênero foi o assassinato de Marielle Franco, ativista negra eleita vereadora pelo Rio de Janeiro em 2017 e morta no ano seguinte. O assassinato da liderança quilombola Bernadete do Pacífico foi um caso ainda mais recente. A coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) foi morta dentro da sua própria casa em Simões Filho, na Bahia, em agosto de 2023.
“A gente entende que essa violência política de raça e gênero ocorre em diversos ambientes, não só o político partidários institucional, ela também acontece nas associações, dentro dos partidos, dentro dos movimentos sociais. Enquanto houver uma mulher que seja liderança política que esteja fazendo a luta social, ela pode ser vítima desse tipo de violência”, destacou Marília Gomes, do Observatório Feminista do Nordeste.
Alinhado ao Observatório, no entendimento do Instituto Alziras, o que une os casos é a raça, o gênero e a defesa dos Direitos Humanos. Para elas, a atual Lei de Violência Política está limitada a fiscalizar apenas casos de candidatas eleitas, o que foi confirmado no Monitor da Violência Política de Raça e Gênero, em que nenhuma ação ajuizada abrangeu candidatas sem mandato.
“É fundamental compreender que as mulheres desempenham uma vasta gama de papéis políticos na sociedade brasileira. Ao ignorar essa multiplicidade, a abrangência limitada da legislação vulnerabiliza sujeitas políticas cruciais para a manutenção e o fortalecimento do sistema democrático”, explicou Michelle Ferreti.
Laila Oliveira, integrante da Rede de Mulheres Negras do Nordeste, questiona a efetividade da proteção preconizada pela legislação, que considera frágil. “Com o ingresso de muitas mulheres negras na política, a gente tem visto o aumento da violência de várias formas, seja nas redes sociais, fisicamente e até mesmo a concretização de morte de algumas mulheres. Precisamos de uma rede para efetivar essa proteção.”
Caminhos traçados em rede
Fruto das lutas e pressão social de movimentos negros, o Brasil elegeu um número recorde de mulheres autodeclaradas negras na Câmara dos Deputados nas eleições de 2022. No entanto, além de estarem ainda sub-representadas em relação à proporcionalidade da população brasileira, especialistas e lideranças alertam para as diversas barreiras enfrentadas por estas mulheres ao chegar no espaço de poder institucional.
“Esse aumento não é algo novo, já vem acontecendo. A gente viu com grande expressividade após a morte de Marielle. Os movimentos sociais retomaram a importância desses espaços políticos, de conquistar, de ocupar, mesmo com a desconfiança. Mas, a gente busca algo que nos resguarde de sofrer violência política”, defende a ativista e jornalista Laila Oliveira.
O caminho para mudança é coletivo. Um exemplo foi a criação da plataforma Mais Negras na Política, com conteúdos para o enfrentamento da Violência Política de Raça e Gênero. Lançada no mês passado, ela contou com a participação de 10 diferentes organizações da sociedade civil, institutos e coletivos, dentre eles o Elas no Poder, Instituto Alziras, Instituto Update, Lamparina e Observatório Feminista do Nordeste.
“Acredito que as nossas comunidades e as construções territoriais podem nos ajudar a crescermos fortalecidas no propósito de dar vazão aos direitos básicos que ainda queremos conquistar. Urge atenção à continuidade de um processo formativo perene para meninas e mulheres interessadas no jogo político”, afirma Thânisia Cruz, do Elas no Poder.
Marília Gomes defende que é preciso o fortalecimento e maior publicidade de organizações como Observatório Feminista do Nordeste. “O Observatório, junto com outras organizações, tem como objetivo reunir textos informativos, pesquisas, além de guias de orientações para como realizar denúncias. A gente acredita que esse é um dos caminhos para incidir na disputa e contribuir mesmo para que essa Lei 14.192 se amplie, qualifique e se torne efetiva.”
Casos de violência política de raça e gênero podem ser denunciados através do site do Ministério Público Federal. O Instituto Alziras disponibiliza o Whatsapp (61) 3771-1071 para acolher vítimas e apoiar juridicamente.