10 anos sem Cláudia Ferreira: a impunidade chancelada pelo Ministério Público e a violência policial contra mulheres negras

Cláudia foi atingida durante uma operação policial no Morro da Congonha, Rio de Janeiro (RJ), enquanto comprava pão para os filhos, e teve o corpo arrastado por uma viatura. Família e advogados relembram a história.

Por Andressa Franco

Imagem: Reprodução

Neste sábado (16), completam-se 10 anos do assassinato de Cláudia Silva Ferreira, aos 38 anos, pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Cacau, como era conhecida, era moradora do Morro da Congonha, no Rio de Janeiro (RJ) e trabalhava como auxiliar de serviços. Ela havia saído na manhã do dia 16 de março de 2014 para comprar pão para os filhos, e se tornou mais uma vítima de “balas perdidas”, que a atingiram no pescoço e nas costas, durante uma ação da polícia. Ela deixou quatro filhos, e o companheiro, com quem completaria 20 anos de casada naquele ano.

Depois de atingida, três policiais a colocaram no porta-malas da viatura, alegando que a levariam para um hospital. Um cinegrafista anônimo registrou o momento em que o corpo de Cláudia caiu do veículo e foi arrastado por 350 metros, preso ao carro apenas pela roupa. O vídeo teve grande repercussão nacional e internacional. 

Os agentes da PM ignoraram buzinas e sinais de outros motoristas, até que pararam. Colocaram o corpo de Cláudia novamente na viatura e seguiram em direção ao Hospital Estadual Carlos Chagas, onde a vítima chegou morta. 

O processo e a impunidade

Até hoje nenhum dos policiais militares acusados foi julgado ou punido pela corporação. Em dezembro de 2023, o capitão Rodrigo Medeiros Boa Ventura, que responde na Justiça pela morte de Cláudia, assumiu o cargo de diretor de Pós-Licença e Fiscalização Ambiental do Instituto Estadual do Ambiente (Inea). O ato foi assinado pelo governador do estado, Cláudio Castro (PL). Quem também responde pelo homicídio é o sargento, Zaqueu de Jesus Pereira Bueno. 

Outros quatro agentes envolvidos respondem por fraude processual, por terem alterado a cena do crime, removendo Cláudia, já morta, do Morro da Congonha. Os subtenentes reformados: Adir Serrano e Rodney Archanjo; o sargento Alex Sandro da Silva e o cabo Gustavo Ribeiro Meirelles. Dois dos acusados já se aposentaram, e os outros quatro seguem em atividade nas ruas do Rio de Janeiro.

O processo contra o grupo está na 3ª Vara da Criminal da capital. Durante sete anos de processo, apenas uma audiência sobre o caso foi realizada, em 2019. Em nota recente para A Tribuna RJ, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro afirmou que o processo “está em tramitação, em fase de alegações finais das defesas dos réus”.

Procurado pela Afirmativa, o escritório do advogado João Tancredo, que representa parte da família de Cláudia [atuando na área civil, e não na criminal] relembrou as informações do processo que caminha com extrema morosidade.

O escritório do advogado João Tancredo, representa parte da família de Cláudia na esfera cível- Imagem: Reprodução

A mãe de Cláudia, dona Sebastiana, que já faleceu, celebrou acordo extrajudicial com o Estado. A outra ação era composta pelo marido, filhos, filhos de criação, sobrinhos e outra irmã. O marido e os filhos também fizeram acordo. Em relação aos demais autores, apenas em relação à irmã foi julgada procedente (R$ 40 mil). A execução já se findou com a expedição do precatório.

João conta que o viúvo de Cláudia, Alexandre, “por necessidade”, fez um acordo não recomendado pelo escritório, recebendo uma casa do programa Minha Casa Minha Vida. “Ele era muito pressionado pelo secretário de Direitos Humanos a fazer um acordo ruim do ponto de vista econômico. Foi uma indenização muito aquém do razoável.”

Em 2022, o escritório entrou com um recurso para tentar majorar o valor da indenização para os irmãos de Cláudia, Jussara e Júlio César, determinada em R$ 50 mil para cada um. O recurso pedia que a indenização fosse de 500 salários mínimos e está aguardando decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) desde então.

“Está se argumentando que aquele acordo feito pelo núcleo central da Cláudia – Alexandre e filhos – também atingem aos demais parentes, e não seria necessário pagar mais nada. É evidente que não, provamos que não. Mas o Estado recorre sempre. É um absurdo, estamos falando de 10 anos e eu entrei com essa ação no primeiro mês do fato”, critica o advogado. 

“A justiça só é célere para pessoas negras, quando é a parte acusada”

Questionado sobre quais justificativas poderiam explicar essa lentidão, João aponta a falta de fiscalização externa do Poder Judiciário como um fator determinante, e a ausência de pessoas negras ocupando cargos no Poder Judiciário. “Só existe a fiscalização interna, são juízes julgando juízes. É preciso um controle externo maior, feito pela sociedade civil organizada.”

Para João, esse descaso é ainda fortemente acentuado quando as vítimas são negras e periféricas. “A justiça só é célere para as pessoas negras, quando é a parte acusada. Se fosse um processo contra a família da Cláudia, já teriam sido presos e condenados. ”

“Ministério Público: a caneta que puxa o gatilho”

A influência de poderes e órgãos para além das corporações da polícia no cenário de violência, letalidade e genocídio contra a população negra, é um tema sobre o qual a advogada e mestra em direito público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Camila Garcez, se debruça. O tema de sua tese de dissertação de mestrado foi “Ministério Público: a caneta que puxa o gatilho – os homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial e o caso Cláudia Silva Ferreira”. 

Camila acompanhou o caso de Cláudia enquanto concluía a sua graduação em Direito, onde escolheu pesquisar os autos de resistência em relação aos homens negros periféricos. Linha de pesquisa que deu continuidade na pós-graduação, onde defende que existe uma maneira tendenciosa de conduzir os casos em que os agentes do Estado figuram como autores do fato e as mulheres negras aparecem na qualidade de vítimas.

“As mulheres são vítimas invisibilizadas. A configuração do crime quando a vítima é uma mulher, já tira de homicídio decorrente de oposição à intervenção policial, porque para ser configurado auto de resistência, alguém resistiu. A mulher vai resistir como?”, questiona Camila, que hoje integra a Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa da OAB Bahia.

Camila Garcez é mestra em em direito público e pesquisou o caso de Cláudia Ferreira – Imagem: Fernanda Maia

O subtenente Adir Serrano Machado, um dos envolvidos na morte de Cláudia, desde 2000 acumulava registros de violência policial, estando envolvido em 57 registros de autos de resistência, que culminaram em 63 mortos. Já o subtenente Rodney Miguel Archanjo, aparece em cinco ocorrências com seis pessoas mortas.

Assim, Camila escolheu o caso de Cláudia Ferreira como referência, e conseguiu acessar as cópias do processo. “Quando analiso o processo é que eu vejo que na verdade quem puxou o gatilho da ação de Cláudia foi o Ministério Público (MP).”

A mestra em direito público não começou sua investigação no MP por acaso. Em agosto de 2015, a Anistia Internacional publicou o relatório “Você matou meu filho!”, que revelava que 80% dos autos de resistência no Rio de Janeiro não tiveram suas investigações concluídas. De 220 investigações abertas em 2011, relativas a 283 homicídios, apenas uma teve denúncia apresentada à Justiça pelo MP.

De acordo com a Anistia Internacional, a maior parte dos 1.519 homicídios por autos de resistência registrados entre 2010 e 2014 ocorreu em regiões pobres da capital, vitimando, principalmente, negros (79%) e jovens (75%).

Em sua tese, Camila partiu da hipótese de que o MP chancela esses homicídios e permanece blindado na missão constitucional de controle externo da atividade policial. “Quando as operações são em bairros nobres, elas acontecem de forma muito organizada, são meses de investigação.” 

“Se a gente perde uma mãe preta, seja de quem for, a gente perde uma viga dentro da comunidade”

A irmã de Cláudia Ferreira, Jussara, conhece bem os impactos da perda de uma mãe, de maneira violenta e abrupta como a que os atingiu. Em entrevista para a Afirmativa, em 2022, ela contou que acompanhou como pôde os quatro filhos e quatro sobrinhos, e que suas vidas, com a presença da mãe, poderiam ter sido diferentes. 

“Os mais novos sentem muito ainda, ficam muito tristes, ela era muito presente na vida deles. Vira e mexe eles choram, não tem mais aquela alegria. […] Ela dizia que tinham que trabalhar, ter o dinheiro deles, e não depender de ninguém”, disse na época.

Família de Cláudia Ferreira – Imagem: Ana Votai

Para Camila, é possível observar nas famílias negras uma configuração de comunidade. “Os filhos da comunidade são filhos de todas as mães pretas. Se a gente perde uma mãe preta, seja de quem for, perdemos uma viga dentro da comunidade. Quando o marido de Cláudia fala que Cláudia era uma multimulher, quer dizer ser tudo. Não morre só Cláudia. A família não é mais a mesma.”

Júlio César, irmão mais velho de Cláudia, conta que a família se dividiu, mas que mantém contato com todos os sobrinhos, que vivem na Cidade de Deus, com o pai. Ele admite que o receio em relação a ações da polícia sempre vai existir. Mas nada o faria sair da comunidade onde nasceu e foi criado. 

“Não consigo me distanciar. Por mais que me traga lembranças ruins, também tenho lembranças boas. Trabalhei nas obras do morro, na construção da creche. É minha raiz. Mas a gente convive com esse medo”, desabafa.

Júlio Cesar Ferreira, irmão de Cláudia Ferreira da Silva, mostra marcas de tiro no local onde a auxiliar de serviços gerais foi baleada no Morro da Congonha – Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

Cacau foi assassinada semanas antes do aniversário de Júlio. A festa já estava programada, e ela, como era de costume, o ajudaria a preparar toda a comida. Os planos foram cancelados, e todos os anos nessa data a saudade da irmã bate mais forte. E são justamente as datas festivas que mais evocam memórias de Cacau. Júlio lembra que o Carnaval era uma das suas épocas preferidas, e a família se reunia para ver os desfiles. 

“Ela era animada, todos os moradores lembram que ela brincava muito, e adorava acompanhar a saída dos ‘Bate-bola’ de Madureira no Carnaval. Uma turma de ‘Bate-bola’ fez uma homenagem à ela no ano passado.”

Quem vai dizer os nomes delas?

No decorrer desses 10 anos, a lista de mulheres negras que, assim como Cláudia, foram vítimas da violência policial, apenas cresceu. Com alguns casos emblemáticos, como Luana Barbosa, morta em 2016, aos 34 anos, por lesões cerebrais provocadas por três policiais militares que a espancaram na esquina de sua casa, em Ribeirão Preto (SP).

Em 2020, teve grande repercussão um vídeo que mostra um policial imobilizando uma mulher negra de 51 anos, pisando em seu pescoço, em Parelheiros (SP). Em 2023, o MP de São Paulo obteve a condenação do PM João Paulo Servato, mas para cumprir a pena em regime aberto.

Em maio de 2021, Jucilene Juriti, então grávida de oito meses, estava com os outros dois filhos no portão da casa onde mora, em São Tomé de Paripe, Salvador (BA), quando foi atingida por três tiros durante uma operação policial, ficando em coma por uma semana e perdendo o bebê. 

O caso remete ao de Kathlen Romeu, grávida de 14 semanas, morta por uma “bala perdida” também durante o fogo cruzado de uma ação policial na Zona Norte do Rio de Janeiro (RJ).

Em janeiro de 2023, Marvis Machado, de 24 anos, foi agredida com tapa no rosto e spray de pimenta por um agente da Polícia Militar no bairro Fazenda Grande, periferia da capital baiana. Também em janeiro daquele ano, em Recife (PE), uma professora trans foi agredida por um PM no Terminal Integrado de Joana Bezerra.

“As vidas de mulheres negras estão sendo interrompidas por agentes do Estado e com a chancela desse Estado”

“Há uma violência institucionalizada, com uma piora significativa. As vidas de mulheres negras estão sendo interrompidas por agentes do Estado e com a chancela desse Estado”, reforça Camila. 

A advogada também critica o aspecto desumanizador e racista da mídia na cobertura dessas histórias. No caso de Cláudia, por exemplo, substituindo seu nome pela alcunha de “a mulher arrastada.”. “A mídia desumaniza: ‘marido de mulher arrastada’, ‘família de mulher arrastada’, e a ‘mulher arrastada’. Ninguém sabe o nome dela.”

Em sua tese, Camila faz um contraponto com o caso de João Hélio Fernandes Vieites, que morreu aos seis anos de idade, em 2007, também no Rio de Janeiro (RJ), durante um assalto. Os assaltantes assumiram a direção do carro antes que a mãe conseguisse tirar a criança do banco traseiro do veículo. Ele foi arrastado por várias ruas, preso ao cinto de segurança pelo lado de fora. O caso teve grande repercussão, e foi marcado por protestos.

“Era uma criança branca, de classe média, que também foi arrastado por um carro. E João Hélio foi chamado pelo nome em todas as reportagens. Não o chamam de ‘o menino arrastado’.”

Para Camila, é preciso pedir por justiça ressaltando que o genocídio contra a população negra no Brasil não é praticado somente pela polícia que aperta o gatilho. 

“Não é só o policial que está na rua. Esse genocídio está sendo praticado pelo Ministério Público quando pede os arquivamentos e pelo judiciário quando chancela. Muito mais responsável é quem está dentro dos seus gabinetes usando suas togas e becas, com canetas de ouro nas mãos e assinando a morte de homens e mulheres negras”, finaliza.

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