BOLETIM 2: Ecos dos Manuscritos de Búzios – 1798

A série Ecos dos Manuscritos de Búzios – 1798reúne uma série de artigos (que poderiam ser boletins sediciosos noutros tempos) sobre as mídias negras brasileiras, publicados originalmente no Mapeamento da Mídia Negra no Brasil realizado pelo Fórum Permanente pela Igualdade Racial (Fopir)

Por Edson Lopes Cardoso*

 

Ministério da Economia

Seu Presidente,

Sua Excelência mostrou que é de fato,

agora tudo vai ficar barato

agora o pobre já pode comer.

Seu Presidente,

pois era isso que o povo queria

o Ministério da Economia

parece que vai resolver.

Seu Presidente,

graças a Deus não vou comer mais gato

carne de vaca no açougue é mato

com meu amor eu já posso viver.

Eu vou buscar

a minha nega pra morar comigo

porque já vi que não há mais perigo

ela de fome já não vai morrer.

A vida estava tão difícil

que eu mandei a minha nega bacana

meter os peitos na cozinha da madame

em Copacabana.

Agora vou buscar a nega

porque gosto dela pra cachorro.

Os gatos é que vão dar gargalhada

de alegria lá no morro.

 

Quero convidar improváveis leitores para me acompanhar na leitura dos versos de uma antiga canção, transcrita acima, que trata de bem-sucedida estratégia de sobrevivência.

Para comer, o povo, o pobre, os negros precisam de uma intervenção do governo na economia, ou melhor, de um órgão que cuide da economia em benefício da população mais carente, a qual, do contrário, sucumbirá diante da “carestia”, da inflação e morrerá de fome.

Há dois espaços contrastantes no universo da canção: morro e Copacabana, significando carência e abundância. “Minha nega” é mandada para emprego doméstico em Copacabana, mandada na crise para servir na cozinha da madame. Há clara indicação de dominação homem/mulher, há classe social, há cor.

O homem, a voz individualizada na canção, “manda” e a mulher obedece. A justificativa, que soa cínica, é que o homem está preocupado com a sobrevivência da mulher, por isso ela vai labutar na cozinha da madame. “A vida estava tão difícil”, mas o que o homem faz, diante do agravamento do quadro, é mandar a mulher encarar a dureza do serviço doméstico. O homem, efetivamente, não tem ocupação.

Com a bonança que “parece” se anunciar com a criação do Ministério da Economia, o homem pode trazer de volta a mulher, voltarão a viver juntos no morro. Vislumbram-se relações de exploração e dominação em diferentes níveis. O homem não mete os peitos, não enfrenta as dificuldades e, em vez disso, toma providências para que a mulher o faça. Na crise, manda trabalhar; na bonança, manda buscar de volta para o morro.

Note-se que a não-participação masculina não é de modo algum justificada. Não precisa. Não parece também sujeita a nenhum tipo de censura. É assim porque é assim, e pronto.

Não há comida, comem-se os gatos. Alimento extraordinário que se deve evitar diante de alternativas mais tradicionais, fartas, abertas no futuro com a criação do ministério. No horizonte da propaganda anuncia-se o fim da carestia. Há muita ironia na projeção feliz: ouvido o clamor popular, o governo intervém, os preços dos alimentos tornam-se acessíveis, a comida aparece, afasta-se o perigo da morte pela ausência de alimento, o casal se reencontra, os gatos também sobrevivem.

Na gravação de Geraldo Pereira, 1951, intérprete original da canção, ele imita os gatos, que miam. Na versão de Jards Macalé, salvo engano de 1987, os gatos gargalham, o deboche é o mesmo, estamos no terreno do improvável e do irrealizável, de pouca ou nenhuma efetividade das medidas governamentais.

Na sequência de animais, “gato”, “vaca” e “cachorro”, os dois primeiros são pares contrastantes, carência e abundância, enquanto “cachorro” é um intensificador do sentimento do locutor para com sua “nega”, mas soa irônico, diante do que efetivamente ficou dito sobre o uso que faz de sua “nega”.

A canção debocha das expectativas da propaganda oficial quando do anúncio da criação do Ministério da Economia por Getúlio Vargas. Sua força desmoralizadora era temida ainda em 1974, sob a censura da ditadura militar, e uma regravação de Leci Brandão foi proibida de circular.

Ouvimos com frequência a versão de Jards Macalé, com arranjos de Júlio Medaglia. Gosto da melodia, acho a letra um primor de entonação irônica, que nada tem de marginal à canção, a ironia é informação essencial à abordagem crítica do “Ministério da Economia”. Geraldo Pereira e Arnaldo Passos são os compositores. Segundo consta, há dúvidas sobre a participação real de Arnaldo Passos.

 

*Edson Cardoso é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), coordenador do Irohin – Centro de Documentação, Comunicação e Memória Afro-brasileira.

 

 

 

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