Quem tem medo das identidades? Ou o que a experiência do BBB21 nos diz sobre isso

Eu demorei a entrar nas redes sociais. Somente criei minha conta no Instagram em julho de 2020, durante o isolamento social causado pela pandemia do novo coronavírus, porque nunca tive muito tempo, interesse, disposição etc. O mesmo eu digo sobre o BBB da Rede Globo, eu nunca assisti uma edição sequer, das 21 existentes. Mas, embora eu não esteja assistido ao

Por Angela Figueiredo* / Imagem: Globo Reprodução

Eu demorei a entrar nas redes sociais. Somente criei minha conta no Instagram em julho de 2020, durante o isolamento social causado pela pandemia do novo coronavírus, porque nunca tive muito tempo, interesse, disposição etc. O mesmo eu digo sobre o BBB da Rede Globo, eu nunca assisti uma edição sequer, das 21 existentes. Mas, embora eu não esteja assistido ao BBB21, estou sendo informada sobre ele de diferentes maneiras: pelo debate, confusão, individualismo, desrespeito entre os participantes, violência psicológica, assedio moral, racismo, xenofobia e falta de empatia e de solidariedade entre os membros negros da casa mais vigiada do país. Muitas vezes o debate ocorre através das postagens nas redes, nos grupos de WhatsApp e, mais recentemente, pelo que me chega através do Instagram.

Acabei de receber o comentário de Wilson Gomes, professor de Filosofia da UFBA, falando sobre como “a esquerda identitária, que não tem um modelo de sociedade, que é dividida em tribos e que não concilia o discurso da diferença com a igualdade” tem se expressado no BBB21. Ao que parece, o professor é completamente contrário à afirmação da identidade, não poupando críticas e, a cada vez que tem oportunidade, censura ferozmente os discursos e práticas afirmativas de pertencimento, mas também não apresenta propostas ou saídas possíveis para a construção de uma equação ideal entre diferença e igualdade, sendo incapaz de reconhecer as importantes conquistas dos movimentos sociais negros, que com muita luta, foram capazes de transformar o Brasil – do discurso da democracia racial, mas sem a prática efetiva de igualdade racial –, em um país no qual pelo menos se colocou a questão da diferença, das desigualdades raciais, do racismo e da igualdade de direitos durante os governos de esquerda liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT). A política de cotas e a aprovação da Lei 10.639/2003 foram conquistas importantes em busca de assegurar a igualdade de direitos entre negros e brancos.

O conceito de raça no Brasil há muito foi acrescido do termo social para destacar a sua dimensão discursiva, ou seja, trata-se de uma construção social (ver WAGLEY, 1952; GUIMARÃES, 2005). De modo muito breve, poderíamos dizer que a história da formulação do conceito de raça no Brasil visava exatamente responder a um processo de “mistura” derivado da miscigenação entre negros, indígenas e brancos, que dificultava que o Brasil visse a si mesmo como um país moderno e civilizado no século XIX, período em que vigorava a crença dos efeitos maléficos da mistura racial. Nesse sentido, é evidente o discurso normativo do Estado sobre a identidade nacional, que constrói os sujeitos supostamente não racializados – os mestiços e mulatos brasileiros –, ainda que a noção de mestiçagem seja, ela mesma, oriunda da crença na existência de pelo menos duas raças.

Sabemos que raça no Brasil é discursivamente construída, não polarizada, afinal de contas, existia e existe hoje, ainda que em medida menor, uma escala classificatória da cor, recentemente denominada de colorismo no Brasil, cujos polos extremos são o branco e o negro, mas que no interior desta escala existem inúmeras denominações associadas aos fenótipos (NOGUEIRA, 1985 e 2007; SILVA, 1994).  A estrutura social brasileira é descrita como uma pirâmide, cujo topo é ocupado pelos brancos, a parte intermediária pelos pardos e a base é majoritariamente formada por pretos e indígenas.

Carlos Hasenbalg foi o primeiro autor a juntar as categorias pretos e pardos, denominadas por ele de não brancos, e demonstrar que em termos dos indicadores de renda, local de moradia e escolaridade, pretos e pardos estavam bem mais próximos e em posição oposta aos brancos. O livro Lugar de negro (1982), escrito por Lélia Gonzalez e Hasenbalg, é ao mesmo tempo uma constatação e uma denuncia das desigualdades e do lugar subalterno ocupado por nós, negros e negras, na sociedade brasileira.

O termo negro, usado de maneira afirmativa, resultou inicialmente de uma reinvindicação dos movimentos sociais negros, e esta demanda afirmativa já estava presente nos livros de Florestan Fernandes, mas é principalmente a partir dos anos de 1970 que o Movimento Negro Unificado (MNU) positiva o termo negro, usado anteriormente de forma pejorativa, e convoca todes nós, pretos e pardos, a afirmar a nossa ancestralidade e identidade negra.

No texto “Carta de uma ex-mulata à Judith Butler”, discorro sobre este tema e argumento que, em termos de conquista e acesso a direitos, a afirmação da identidade negra possibilitou vitórias importantes nos campos político, educacional e simbólico. A afirmação da identidade não passa apenas pelo elogio da diferença, afirmar a diferença é uma estratégia importante para conquistas no âmbito da igualdade política.

Certamente, o que aparece no BBB21 não é um espelho do Brasil, pois nós, negros e negras, somos muito mais diversos, e a afirmação do pertencimento racial e do orgulho de ser negro não altera o caráter de cada um de nós. O que ocorre no BBB21 é uma estratégia bem montada pela emissora que colocou, pela primeira vez, um número significativo de negros ali, mas que escolheu/selecionou pessoas negras competitivas, pouco solidárias, incapazes de ter empatia umas com as outras, e isso não tem nenhuma relação com a afirmação da identidade racial.

Como uma resposta ao empoderamento e ao crescimento do feminismo negro, tão importante nos discursos e práticas de pessoas negras, a Globo mostra como as mulheres empoderadas, as que tombam, são também as que excluem, as que desrespeitam e as que tripudiam dos mais fracos. É evidente que se trata de uma manobra endereçada a nossas conquistas. Relacionar a afirmação das identidades raciais, de gênero e sexuais aos erros e excessos, ao individualismo e à má conduta me parece um absurdo. As críticas ao discurso e às práticas afirmativas da identidade são bem vindas, mas elas precisam ir além do maniqueísmo e da empiria oferecida pelos negros escolhidos para participar do BBB21.

A minha experiência, como professora e pesquisadora das desigualdades raciais e de gênero, assim como integrante do movimento de mulheres negras, é totalmente diferente das experiências vividas no BBB21. Para não me alongar, citarei breves e recentes exemplos de solidariedade e de estratégias coletivas de enfrentamento ao racismo e ao heteropatriarcado branco. A começar pelas candidaturas coletivas de mulheres negras e mulheres trans, que se apresentam como uma alternativa efetivava na política partidária, e tem sido uma resposta bem articulada de combate ao individualismo neoliberal. Também, as diferentes formas de solidariedade entre pessoas negras para com aquelas que foram fortemente impactadas pelo desemprego durante a pandemia. Quantas vezes somos acionadas, através das redes, para contribuir com a sobrevivência de famílias que têm fome? E o que dizer dos coletivos negros existentes nas universidades? Lá se dividem experiências, histórias, livros, PDFs e computadores, contribuindo para a permanência de muitos estudantes negros e negras nas universidades.

Para concluir, quero dizer que a forma como as identidades raciais e de gênero são vivenciadas no BBB21 certamente existe na sociedade, mas ela não é a única. A escolha deliberada em colocar pela primeira vez tantos negros nesta edição é um experimento, deliberadamente com intenções políticas de minar qualquer possibilidade de solidariedade entre nós, negros e negras, e para mostrar os limites das políticas de identidade. Para os bolsominios, que me encontrarem na rua hoje, e que me interpelarem sobre a crueldade e sobre a falta de solidariedade das pessoas negras do BBB21, isso é um prato cheio.

 

Referências

FIGUEIREDO, Angela. Carta de uma ex-mulata à Judith Butler. Revista Periódicus, v. 1, n. 3, p. 152-169, mai./out. 2015.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2005.

GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.

NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudo de relações raciais. São Paulo: T.A. Queiroz, 1985.

______. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Soc., São Paulo, v. 19, n. 1, p. 287-308, jun. 2007.

SILVA, Nelson do Valle. Uma nota sobre “raça social” no Brasil. Estudos Afro-Asiáticos, n. 26, p. 67-80, 1994.

WAGLEY, Charles. Comment les classes ont remplacé les castes dans le Brésil septentrional. In: WAGLEY, Charles. Races et classes dans le Brésil rural. Paris: Unesco, 1952.

 

*Coletivo Angela Davis/UFRB e Fórum Marielles

Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress