Dona Ivone Lara: rainha necessária, majestade de talento e representatividade!

No último dia 13 de abril, oficialmente se deu início as comemorações do centenário de nascimento de Ivone Lara da Costa. Filha de uma costureira e de um mecânico de bicicletas, a pequena Ivone não sabia ainda, mas se tornaria uma verdadeira rainha, em um país em que “reinados” são forjados a partir de um privilégio branco e masculino.

Por Jamesson Vieira*

Imagem: Divulgação/Projeto Baú da Dona Ivone

No último dia 13 de abril, oficialmente se deu início as comemorações do centenário de nascimento de Ivone Lara da Costa. Filha de uma costureira e de um mecânico de bicicletas, a pequena Ivone não sabia ainda, mas se tornaria uma verdadeira rainha, em um país em que “reinados” são forjados a partir de um privilégio branco e masculino.

Ainda muito pequena, Ivone se tornou órfã de pai e mãe e foi morar com os tios no Morro da Serrinha, em Madureira. Porém, até os seus 16 anos, ela estudou em um internato na Tijuca. Por conta de uma infância pobre – possuir uma boneca era um “luxo” do qual aquela menina não podia se dar. Aos 12 anos, em uma de suas férias na casa dos tios, ganhou de seus primos e futuros parceiros de composição (Mestre Fuleiro e Hélio dos Santos) um pássaro “Tiê-sangue”, em compensação ao brinquedo que não podia receber. Aquele presente passarinho serviu de inspiração para compor seu primeiro samba de partido alto, o “Tiê-tiê”.

Na adolescência, Ivone já possuía admiradores que acreditavam no seu gigantesco potencial. Suas professoras de música no colégio, a Lucília Guimarães (esposa do maestro Villa-Lobos) e Zaíra Oliveira (primeira esposa de Donga), acreditavam tanto em sua capacidade que a indicaram a participar do “Orfeão dos Apiacás”, da Rádio Tupi, que era regido pelo Maestro Heitor Villa-Lobos. Na juventude, aprendeu a tocar cavaquinho com seu tio Dionísio Bento da Silva, que fazia parte de um grupo de chorões, com nomes como Pixinguinha, Donga e Jacob do Bandolim. Aquela garota afinada, que sonhava com as melodias de suas canções antes de compô-las, tornava-se uma grande cavaquinista também. Proprietária de uma intuição melódica única – ela não fazia idéia que iria se apropriar do termo “Dona” com tanto merecimento. Afinal de contas, o samba precisaria dela como nunca antes havia precisado de alguém.

Entretanto, a música precisou dar um tempo em sua vida. Pois na mocidade, seu tio Dionísio teria dito que não tinha condições de sustentá-la fora da escola. Ivone foi literalmente à luta depois disso. Começou a estudar enfermagem e não somente a trabalhar com a saúde das pessoas – tornou-se referência.

Ela teve uma grande importância na história da luta antimanicomial e nos serviços sociais de saúde pública brasileira. Trabalhou como enfermeira e assistente social em hospitais psiquiátricos, atuando ao lado da psiquiatra Nise da Silveira. As duas acreditavam que um trabalho humanizado era o melhor caminho na recuperação dos pacientes.

Ivone se especializou em terapia ocupacional e inseria a música no tratamento dos doentes. Na época, percorria corredores do Instituto Psiquiátrico Pedro II em busca de histórias e referências familiares desses pacientes. Seu objetivo era resgatar os vínculos afetivos entre essas pessoas. Ela viajava por municípios do Rio e de Estados vizinhos localizando os parentes dos padecentes, que haviam sido abandonados pelos seus familiares no hospital.

Foram mais de 36 anos dedicados a cuidar da saúde das pessoas. Para fins de entendimento – a grandiosidade de Dona Ivone Lara não era apenas artística, era uma grandiosidade humanista também. A vida de Ivone sempre a teve como protagonista, nunca foi expectadora de nada. Sua identidade teve como conteúdo seu próprio projeto biográfico, sua forma de existir – que nunca se limitou com o “não pode”, sempre esteve além de sua cor, de seu gênero e de seu tempo.

Em paralelo ao seu trabalho com a saúde mental, Ivone nunca abandonou a música. A arte de compor, criar melodias e cantar nunca esteve distante dela.

Em 1945, após se mudar para Madureira – ela começou a frequentar a Escola de Samba Prazer da Serrinha. Nessa época, Ivone já compunha seus sambas para esta Escola, porém o meio – assim como em várias partes da sociedade – era extremamente machista. Ser mulher e negra neste universo dominado por homens era mais que um desafio, tornava-se um fator de “sobrevivência”. Para conseguir mostrar seus sambas, Ivone propôs ao primo, Mestre Fuleiro, que os apresentassem como sendo dele, pois o preconceito não admitia que mulheres fossem compositoras.

Ao casar-se com Oscar Costa, filho do presidente da Escola, em 1947, começou a aprimorar seus dotes de sambista e foi aí que conheceu nomes como Mano Décio da Viola, Silas de Oliveira e Aniceto – que futuramente seriam seus parceiros de composições. No mesmo ano, compôs o samba “Nasci para sofrer” – que se tornou hino do Prazer da Serrinha.

Ainda em 1947, fundam a Império Serrano. Quase 20 anos depois, em 1965, Ivone passou a fazer parte da Ala de Compositores da Escola, sendo a primeira mulher a fazer parte de uma ala de compositores e, também, a primeira mulher a compor um samba-enredo. Em parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau, ela cria o clássico “Os Cinco Bailes Tradicionais da História do Rio”. Em 1968, Ivone Lara é consagrada a madrinha da ala dos compositores e desde então passa a desfilar na avenida na ala das baianas.

No ano de 1970 – Ivone – que agora recebia o nome artístico de Dona Ivone Lara – grava seu primeiro disco, intitulado “Sambão 70”, pela gravadora Copacabana. O trabalho foi produzido por Sargenteli e pelo jornalista Adelzon Alves.

Mas o sucesso e o reconhecimento nacional começam a bater sua porta em 1978, logo após ela se aposentar da enfermagem e passar a se dedicar integralmente a música. Dessa vez gravado pela Odeon e produzido novamente por Adelzon Alves, Dona Ivone lança o LP “Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz”. A capa desse disco é um marco histórico, pois ela aparece tocando cavaquinho em meio a vários grandes nomes do samba, todos homens, no quintal do portelense Manacéa, em Oswaldo Cruz. Definitivamente, só uma majestade do porte de Dona Ivone Lara seria capaz de tal feito, com tanta naturalidade e convicção.

Aquela mulher negra; de curvas não tão “padrão” da sociedade; de voz doce e de gingado ancestral característico das rainhas, começava a voar por céus ainda desconhecidos. O voo foi alto e tão forte que ela não parou mais. A partir dali, lançou 15 álbuns; dois DVDs; compôs diversos sucessos, em parceria com os mais renomados nomes da MPB; teve sua música gravada por gente como Maria Bethânia (que graças à canção “Sonho Meu” foi a primeira artista mulher a vender mais de um milhão de cópias, no país), Gal Costa, Clara Nunes, Caetano Veloso, Jorge Aragão, Gilberto Gil, Fundo de Quintal, Beth Carvalho, Martinho da Vila e uma infinidade de outros artistas. Além disso, também recebeu diversas homenagens como, por exemplo, foi homenageada na 21ª Edição do Prêmio da Música Brasileira (2010) e no enredo feito pela Escola Império Serrano (2012). No dia 16 de abril de 2018, Dona Ivone nos dava adeus e encerrava seu reinado aqui na terra.

Falar sobre essa mulher é reafirmar toda a nossa capacidade – enquanto pessoas pretas – de produzirmos conhecimento e arte de qualidade, como sempre foi e como nossa história nos diz. Mais que isso, contarmos a história da Majestade do Samba é também inspirarmos outras meninas e mulheres pretas a lutarem pelos seus sonhos e pelos seus objetivos.

Há um discurso ensaiado da branquitude – que talvez a própria Dona Ivone Lara não se deu conta ao afirmar, algumas vezes, que não seguia rótulos de ativista – mas que é usado para destituí-la desse papel de militante que sempre exerceu, mesmo que de forma natural. Tudo que ela fez pode se chamar de “militância orgânica”, da mais alta qualidade e pureza.

Dona Ivone é a imagem feminina que destoa de um universo machista, comercializado por pessoas brancas que colocam o corpo feminino negro como a única representação de “exportação”. Ao se tornar a primeira compositora de sambas-enredo, ela rompe barreiras e o espaço-tempo para dizer a todas as mulheres, da época e dos dias atuais, que elas podem ser o que quiserem. Dona Ivone Lara abre caminhos para que outras profissionais conquistem oportunidades e com isso alcancem lugares de sucesso.

Em 2004, em entrevista ao jornalista da Folha de São Paulo, Pedro Alexandre Sanches, que a perguntou se ela se considerava uma mulher livre – Dona Ivone o respondeu da seguinte maneira: “… Só não fui aquilo que não quis ser. Tudo o que usufruí e usufruo até a data presente é porque eu quis e fiz por onde”, disse ela.

Outra coisa, Dona Ivone nunca precisou sair por aí dizendo que era negra e que tinha orgulho de sua ancestralidade. Sua obra responde por si só. Nunca escondeu suas origens, nem muito menos se achou no direito de explicar porque estava cantando um “ponto de terreiro”; um “jongo” e mesmo um música de afirmação e luta negra. Estava tudo ali na cara, você consome se quiser, mas saiba que ao consumir precisa entender que aquele universo é sua casa. E é de muito bom tom que ao entrar na casa de alguém, você tenha respeito pelo que vai ouvir ou ver.

Têm jornalistas por aí, falando que ela nunca foi ativista, ou que nunca se preocupou com essas coisas. E assim como fizeram com toda sua luta pela saúde pública, deste país, apagando essa parte importante da sua história – hoje tentam, também, apagar sua representatividade, de maneira sorrateira e desonesta com tudo que Dona Ivone Lara foi, é e representará para as futuras gerações – sobretudo para as mulheres negras. Por isso não acredite, não leve a sério e nem reproduza esse tipo de discurso, até porque ele nem precisa vir à tona. Só o fato de essa mulher ter existido já é militância da mais alta qualidade, por si só. Seja no campo da saúde mental, da música, do feminismo e do ativismo preto.

Os movimentos – sobretudo os de militância negra e feminina – precisam entender que Dona Ivone chega quebrando tradições engessadas, que já estavam muito bem estabelecidas na sociedade, abrindo portas e mexendo com a autoestima e percepção de quem vem depois dela. Ela mostrou que não basta apenas ter talento é preciso ter coragem para externá-lo.

Há de se destacar também que ser compositor ou compositora não é a coisa mais simples do mundo, nem sempre o reconhecimento acontece e muita gente morre no ostracismo de tanto talento. Mas, Dona Ivone Lara provou também que podia fazer seu nome ser lembrado para além da sua voz. Estava ali em cada letra, roda de samba, regravação, camisa pintada com trechos de suas canções. Estava em cada nova cantora, em cada menina negra que sonha com a música, em cada cantinho de ancestralidade da Música Popular Brasileira.

Dona Ivone Lara é indispensável para seguirmos lutando contra o racismo e o machismo da nossa sociedade!

 

*Recifense – 33 anos.Graduado em jornalismo, poeta, escritor e pesquisador da cultura de terreiros e afro brasileira.

 

 

 

** Este texto está dentro da política editorial da Afirmativa, mas não reflete, necessariamente como um todo, a opinião da Revista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Nobile, Lucas. Dona Ivone Lara: A Primeira Dama Do Samba. 1ª edição. Editora: Sonora. 2005.

Vida de Dona Ivone Lara. 2016. Disponível em: http://www.donaivonelara.com.br/vida.php. Acesso em: 15 abr. 2021.

SANCHES, Pedro Alexandre. “Ouça a voz e o samba de Dona Ivone Lara, 83. Folha de São Paulo. 25 jul. 2004. Música. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2507200418.htm. Acesso em: 15 abr. 2021.

 

 

Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress