Trabalho doméstico e luta por garantia de direitos: entrevista com Milca Martins, representante da categoria.

Última terça-feira, 27 de abril, foi a data que marcou o Dia da Trabalhadora Doméstica, e para conversar com a gente os desafios dessas trabalhadoras na garantia de seus direitos, convidamos Milca Martins, secretária-geral do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico) e diretora da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas. 

Dia 27 de abril foi o Dia da Trabalhadora Doméstica, conversamos com  Milca Martins, secretária-geral do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico) e diretora da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas

Por Andressa Franco e Patrícia Rosa

Imagem*: Fenatrad

Última terça-feira, 27 de abril, foi a data que marcou o Dia da Trabalhadora Doméstica, e para conversar com a gente os desafios dessas trabalhadoras na garantia de seus direitos, convidamos Milca Martins, secretária-geral do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico) e diretora da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas

Mineira de 52 anos criada na Bahia, chegou em Salvador aos sete anos de idade na promessa de uma opotunidade para estudar, quando na verdade o que a esperava era uma infância de exploração no trabalho infantil, como trabalhadora doméstica, em um ambiente onde sofreu incontáveis abusos, de espancamento à violência sexual, conseguindo fugir apenas aos 12 anos de idade. Milca nos conta que o dia 27 é um dia de luta e resistência, para a categoria: “Eu sempre gosto de falar que quando uma trabalhadora doméstica se levanta, ela consegue levantar milhões de outras trabalhadoras e outras mulheres também”, declara.

Milca na Marcha das Mulheres Negras 2018 em Salvador / Reprodução das Redes do MNU Salvador

No Brasil, a primeira Associação de Empregadas Domésticas foi fundada em 1936, na cidade de Santos (SP), por Laudelina de Campos Melo, liderança pioneira na luta pelos direitos das domésticas. Esta área de atuação, no entanto, só foi reconhecida como profissão em dezembro de 1972, com a Lei nº 5.859, e a categoria só teve direitos assegurados na Constituição Federal de 1988.

Mais de 30 anos depois, a maioria das trabalhadoras não teve seus direitos cobertos, e enfrentam a resistência dos patrões no cumprimento da lei, o que pode ser observado nos números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2020, que aponta que menos de 28% da categoria possui vínculo empregatício e direitos trabalhista assegurados. O país tem cerca de seis milhões de funcionários nesta categoria, sendo 92% (5,7 milhões) mulheres, e destas, 3,9 milhões negras, conforme os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2018. Com a pandemia de covid-19, veio o aumento da vulnerabilidade, com os confinamentos forçados, descumprimentos das leis trabalhistas, além do aumento das perdas em postos de trabalho. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 1,2 milhão de pessoas perderam o emprego nessa atividade.

Afirmativa: Como foi a sua infância? E qual foi o seu primeiro contato com o trabalho doméstico? 

Milca Martins: Sou mineira, fui criada aqui no Nordeste. Na época minha mãe ficou viúva muito cedo, com oito filhos, e ela acabou vindo de Minas para Cruz das Almas (BA). Chegou uma época que a filha da patroa da minha mãe pediu para que ela deixasse eu ir para capital para estudar, onde fiquei dos 7 até os 12 anos de idade. Sofri muita violência de espancamento à violência sexual, fui abusada sexualmente pelo patrão e pelo filho dele. Até hoje eu tenho problemas de saúde por conta dessas violências. Aos 12 anos eu consegui fugir da casa, em uma tarde a patroa pensou que tinha fechado a porta, eu vi que a porta estava aberta, foi meu momento de fuga. Fiquei muito tempo na rua perambulando, não lembro quanto tempo,  me escondendo das pessoas, com medo da patroa me encontrar. Fui encontrada por um policial, os parentes dele moravam em Cruz das Almas. Depois de muito tempo consegui recuperar a memória, e fui falando  de onde eu era, que eu queria a minha mãe. Aí eles me levaram de volta, minha mãe quase morreu, porque quando a filha da patroa viajava pra casa sempre dizia que eu estava muito bem, estudando, e que não queria voltar pro interior. Eu fiquei na casa da minha mãe até os 16  anos  curando as feridas, e depois  retornei de novo com uma outra família para trabalhar como babá. Dos meus sete irmãos, cinco são mulheres, e todas são trabalhadoras domésticas.

Afirmativa: Como a luta pelos direitos das trabalhadoras domésticas passou a fazer parte da sua vida?

Milka Martins: Aos 19 anos tive uma relação com um rapaz, engravidei, e aí foi que eu vim ter posse de tirar meus documentos, que nem documento eu tinha. Quando completei 22 anos, passei a morar aqui no bairro de Mata Escura [periferia de Salvador (BA)], onde ainda moro. Depois de quase 10 anos aqui, Deus me abençoou novamente e a Creuza [Oliveira], nossa presidenta e fundadora do Sindicato da Bahia, veio morar perto de mim. Com o tempo aqui, ela percebeu que todos os dias eu saía entre 4h30 pra 5h, deixava meu filho com a vizinha, e não tinha horário pra chegar. Aquela coisa de comunidade, ela foi chegando aos pouquinhos, “E aí vizinha? Como é que cê tá?”, “Cê me arruma aí um copinho de açúcar? Uma aguinha gelada?”. Ela foi se aproximando aos pouquinhos para compreender quem era Milca, me perguntou qual o trabalho que eu fazia, e eu disse: “Eu trabalho em casa de família”. Ela então me perguntou se eu já tinha ouvido falar do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas, e, pra vocês entenderem, eu nem sabia que o que eu fazia era uma profissão, eu não tinha noção que eu era uma trabalhadora doméstica. Então ela me explicou que tinha um sindicato, me chamou pra ir conhecer, perguntou se eu trabalhava de carteira assinada, e aí começou todo um bate-papo de consciência.

De pé, da esquerda para a direita, Milca e Creuza no lançamento do Coletivo de Mulheres Creuza Oliveira / Fenatrad

Afirmativa: Fazer parte de um sindicato e se organizar com outras trabalhadoras domésticas mudou sua visão a respeito da profissão e dos seus direitos? 

MM: Eu, assim como milhões de trabalhadoras, praticamente não conhecia meus direitos. Depois de conhecer o sindicato a minha vida se transformou, quando eu cheguei pela primeira vez, a sala estava com mais de 30 mulheres, todas trabalhadoras domésticas. Dentro dessa palestra entrou-se muito a questão do direito trabalhista, eu tinha direito a carteira assinada desde 1972, férias, 13º salário. Fiquei encantada, porque nem carteira de trabalho eu tinha. A própria direção da palestra me orientou a  tirar uma carteira profissional, entregar à patroa, e ela deveria me  devolver com 48h assinada e pagar o INSS (Instituto Nacional de Seguro Social). Cada vez mais eu fui entendo que eu não era da família, que não estava ali pra receber menos do que um salário, e que o que a patroa me dava ali não era um favor, que a patroa não era boazinha, que ela teria que respeitar o que a lei estava dizendo desde 1972. Eu fiquei com muito medo de conversar com a minha patroa, porque já tinha mais de 15 anos na casa, e ela me mandar embora, com um menino pequeno, meu esposo era mecânico na época, ele já tinha 3 filhos, o dinheiro não dava. E foi isso que aconteceu, ela falou: “A partir de amanhã não precisa você vir mais, porque eu não conheço direito de trabalhadora doméstica, não sei nem o que é isso”.

Hoje tenho 52 anos, vim ter minha carteira assinada em 2013, trabalhei seis meses só de carteira assinada, é essa a assinatura que eu tenho na minha carteira até hoje. Esses anos todos eu vim trabalhando e eu fui prejudicada porque não tinha o conhecimento desses direitos.

No Sindicato comecei a participar dos movimentos de rua, palestras em escolas. Hoje eu ‘tô’ nessa missão para poder continuar preparando outras lideranças e libertando essas mulheres dessas violências que todas nós passamos, cuja maioria são mulheres negras e chefes de família que vivem em bairros periféricos.

Milca conduzindo reunião mensal do Sindicato Foto: Arquivo Pessoal – Imagem feita antes da pandemia do novo coronavírus

 

Afirmativa: Qual a importância de existir um dia nacional dedicado às trabalhadoras domésticas?

MM: É uma data simbólica, mas é um dia de luta e resistência para todas nós, para que a gente continue fazendo nosso trabalho enquanto representatividade da categoria. Eu sempre gosto de falar nas minhas entrevistas que quando uma trabalhadora doméstica se levanta, ela consegue levantar milhões de outras. Por que até pra vocês hoje estarem aí fazendo essa entrevista, com certeza teve uma trabalhadora que deu suporte pra essa família. Então a gente não luta só pelo direito da categoria, a gente luta por um todo, é a libertação, é para que a gente perceba a importância das trabalhadoras domésticas na vida das mulheres. 

Afirmativa: A classe das trabalhadoras domésticas tem um histórico de abusos e violações de direitos. Como essas violências se agravaram na pandemia?

MM: Dentro da pandemia a gente está sofrendo várias situações de desvalorização, o segundo caso de infecção na Bahia foi uma trabalhadora doméstica contaminada pela patroa em Feira de Santana. A primeira morte por contaminação do vírus no Rio de Janeiro, foi uma trabalhadora doméstica de 63 anos. A pandemia só veio revelar tudo que a gente já vem sofrendo com a questão do racismo, com as questões de raça, gênero e classe.

A covid só veio para mostrar o lado da luta dessas mulheres que a gente já vem há anos gritando, chamando atenção da sociedade civil, chamando atenção dos governantes para que essa categoria seja uma categoria valorizada, reconhecida perante toda a sociedade.

A gente vem sofrendo muito com a questão das suspensões de contratos de trabalho, onde houve um decreto que dizia que a trabalhadora teria que não ser prejudicada, ou seja, ela seria afastada no período de quatro, cinco  meses, e ser remunerada. A gente sabe, com as denúncias que elas estão fazendo no sindicato, que os empregadores vem fazendo suspensões de contratos, mas obrigando estas trabalhadoras a irem prestar o serviços. Alguns empregadores colocaram a trabalhadora doméstica mensalista como diarista, por dias, mas não deram nenhum suporte para que ela vá de Uber, com segurança, nem os EPI ‘s (Equipamento de Proteção Individual). Eles estão reduzindo a carga horária e também os salários, e dentro deste decreto não pode ser feito dessa forma. A situação das trabalhadoras dentro dos transportes públicos, a contaminação é bem maior. Quando ela chega ao local de trabalho, ela também não tem as máscaras adaptadas. Muitas dessas trabalhadoras nem sabem que o sindicato existe. Na federação das trabalhadoras domésticas e no Sindicato, a gente vem através da rede social, dando  o apoio nesse  primeiro momento, que é por meio de lives, reuniões, campanha de apoio para a gente ouvir elas, para  trazerem essas denúncias pra gente. A gente, enquanto da Federação, lançou a campanha “Cuida de Quem te Cuida”

Afirmativa:  Como as trabalhadoras, que estão passando por esses abusos, podem fazer a  denúncia, como é o processo?

MM: De segunda a sexta a gente faz esse atendimento de 35 a 40 trabalhadoras. Agora com o sindicato fechado, com as demandas chegando via WhatsApp, as denúncias aumentaram muito mais, em torno de 80%. O número do Sindicato é 71 98845-1777, também temos o email: sindomesticobahia@gmail.com, todo santo dia a gente olha esse email. Como a lei existe, quando chegam essas denúncias, a gente faz a primeira escuta, para entender como foi feito o processo de suspensão de contrato, quantos anos elas estavam na casa, se elas estão com a carteira assinada, se estão inscritas no eSocial. Na sua maioria, elas não estão com a carteira assinada, ou seja, uma forma de eles burlarem a lei. Quando chega ao nosso conhecimento, aquelas que já tem o registro em carteira, que já tem 10 ou 20 anos na casa, nesses casos a gente busca o apoio jurídico. Até meados do ano passado, ainda tiveram algumas audiências online, entre o empregador, a trabalhadora e o advogado. Mas até isso a Covid veio impactar nas nossas vidas, porque a maioria delas não puderam estar presentes, a conexão com a internet nas periferias não é fácil, a gente não tem um computador, um notebook, a maioria delas não sabe ler, escrever.

No mês de abril [ a entrevista foi realizada no dia 21 ] a gente teve 28 casos de trabalhadoras que estavam dentro dessa situação, onde os patrões estavam obrigando elas  permanecerem no local de trabalho até terminar a pandemia.

Essas mulheres têm filhos, são mães solteiras, como é que fica a situação dessas mulheres se elas aceitarem essa forma perversa e desigual?

Mobilização do Coletivo de Mulheres Creuza Oliveira em Ato Público no 8 de março / Fundo Brasil – Imagem feita antes da pandemia do novo coronavírus

 

Afirmativa: Muitos casos recentes de cárcere privado e trabalho análogo às condições de escravidão estão sendo denunciados e descobertos no Brasil. O que isso tem a ver com a cultura racista e sexista do Brasil e como você estima a real dimensão deste problema no país? 

MM: Eu vejo como uma questão de raça, gênero e classe, porque a situação das trabalhadoras domésticas no Brasil, essa luta árdua que a gente já vem travando por reconhecimento perante a sociedade. Quando você traz essa questão, dessas denúncias que a gente está vendo hoje, é porque isso já estava incubado, essas mulheres que estão sendo libertadas hoje pelos poderes públicos não estão lá há um ou dois anos, elas estão lá há décadas, ou seja, elas chegam crianças. A lei diz que dentro de uma empresa a fiscalização pode ocorrer, mas em uma residência, o lar é inviolável, a não ser que ocorra alguma denúncia, alguma agressão, como a Lei Maria da Penha, que você pode ligar e denunciar. Mas, no trabalho doméstico a gente já vem se organizando com a Organização Internacional do Trabalho para que nessa categoria também possa haver a fiscalização, pois isso ocorre dentro do trabalho doméstico também, porque não tem fiscalização. Eu tive oportunidade de fugir, se não hoje eu seria uma dessas vítimas.

Em quantas mulheres a gente consegue chegar com elas ainda com vida, mesmo doentes, mesmo acabadas? Mas quantas morreram e a família nem teve o direito de sepultar?

 

*Imagem feita antes da Pandemia do Novo Coronavírus

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