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Personagens históricos que a escola não ensinou: conheça a trajetória política de cinco intelectuais negros do século XIX

O trabalho da pesquisadora Maria Eduarda Abreu Cavalcante se dedica às biografias de cinco homens negros invisibilizados pela historiografia brasileira
Imagem: Reprodução

Por Jamile Novaes e Luana Miranda

A Lei Federal 10.639, sancionada em janeiro de 2003, tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira em todas as instituições de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares do Brasil, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Uma conquista histórica e um marco na luta dos movimentos negros, a Lei nasceu com os objetivos de combater o racismo nas escolas, bem como valorizar as contribuições dos povos negros na história brasileira e na formação da cultura do país.

No entanto, como se sabe, direito conquistado não necessariamente significa direito garantido. O que se observa, ao longo dos 22 anos de promulgação da Lei, é uma série de resistências impostas para a sua aplicação plena. Segundo pesquisa realizada pelo Geledés Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana, divulgada em 2023, 71% das secretarias municipais de educação do Brasil realizam pouca ou nenhuma ação que garanta a implementação da norma.

Foi com essa realidade que a pesquisadora Maria Eduarda Abreu Cavalcante se deparou nos seus anos escolares e, posteriormente, enquanto cursava História na universidade. “Eu não estudei sobre homens negros e mulheres negras que eram professores, advogados no século XIX. E quando eu descobri que eles existiam, isso mexeu comigo. Como as pessoas não sabem dessa informação?”, questiona. 

A partir desse incômodo e da falta de identificação com a historiografia que lhe foi apresentada, ela decidiu dedicar sua trajetória acadêmica às pesquisas sobre intelectuais negros que viveram no Brasil durante o século XIX. São médicos, advogados, homens livres que chegaram a ocupar cargos públicos, mas que foram invisibilizados nos livros de História e, consequentemente, apagados do imaginário da população brasileira.

Ao acessar a revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Maria Eduarda se deparou com a trajetória de Francisco Sales Torres Homem, que foi tema da sua monografia e, posteriormente, da sua dissertação de mestrado. Através de Torres Homem, ela descobriu Antonio Pereira Rebouças, Francisco Gê Acabaya Montezuma, Joaquim Cândido Soares de Meirelles e Joaquim Saldanha Marinho, personagens retratados em sua tese de doutorado – atualmente em construção.

Com a expectativa de ampliar o alcance do seu trabalho, e contribuir para a promoção da Lei de ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas, a pesquisadora compartilhou com a Afirmativa algumas das informações que vem mapeando. “Eu sou professora, então eu sei que é muito mais fácil você ler uma reportagem do que parar para ler uma tese, diante da sua rotina escolar. Então, que isso vire base para que as pessoas possam aprender isso na escola”, explica.

Francisco Sales Torres Homem

Filho de uma quitandeira negra forra e de um padre português livre, de pertencimento racial não identificado, Torres Homem nasceu no Rio de Janeiro em 1812. Formou-se em Medicina na Academia Médica Cirúrgica do Rio de Janeiro em 1832 – embora não existam informações oficiais que confirmem que ele tenha atuado como médico – e concluiu seus estudos em Direito na Universidade de Paris em 1937. No entanto, foi a partir da sua atuação enquanto jornalista que ficou conhecido na sociedade do século XIX. Com apenas 19 anos, publicou o seu primeiro jornal, O Independente. Ao final dos anos 1940, publicou ainda O Libelo do Povo e A Filha do Timandro.

Com uma carreira profissional e política multifacetada, Torres Homem, que era chamado de “mulato”, “arrogante” e de “aparência repelente”, atuou ainda como deputado, diplomata, ministro, presidente do Banco do Brasil, conselheiro de Estado, Senador e Visconde de Inhomirim. 

Como parlamentar, teve um papel relevante na elaboração da Lei do Ventre Livre. Em discurso proferido em 5 de setembro de 1871, ele denunciava: “O Brasil, retardado visivelmente pela escravidão no caminho da prosperidade, não tomará seu vôo para o futuro de grandeza e de opulência a que está predestinado, senão quando no seu solo livre nenhuma planta crescer orvalhada com o suor e com o sangue do escravo.”

Antônio Pereira Rebouças

Nascido em Maragogipe (BA), em 1798, Antônio Rebouças era filho de mãe negra forra e pai branco livre, que atuava como alfaiate. Autodidata, aprendeu Direito por conta própria até estar qualificado para trabalhar como advogado na Bahia. Figura importante no campo da luta por direito à cidadania para a população “de cor”, foi autor da obra Observações à Consolidação das Leis Civis de Augusto Teixeira de Freitas

Ao longo da sua trajetória, Rebouças ocupou os cargos de Secretário da Junta Provisória do Governo, Deputado e Conselheiro de Estado. Também atuou como jornalista, publicando os jornais O Constitucional (1822) e O Bahiano (1828). Já ao fim da sua vida, em 1879, lançou a obra Recordações Patrióticas, uma espécie de diário que reúne acontecimentos históricos notáveis ocorridos entre os anos de 1821 e 1838. 

Como frutos da sua trajetória de atuação política, Rebouças deixou ainda os filhos André Rebouças e Antônio Rebouças Filho, engenheiros de formação que se destacaram também como líderes do movimento abolicionista brasileiro.

Francisco Gê Acabaya Montezuma

Médico, advogado e jornalista, Francisco Gomes Brandão nasceu na cidade de Salvador (BA), em 1794. Filho de um comerciante envolvido com o tráfico negreiro, o intelectual foi um dos grandes defensores da Independência do Brasil e da abolição da escravatura. Já na vida adulta, Francisco abandonou o nome da família e adotou os sobrenomes Gê Acabaya Montezuma, com o objetivo de evidenciar suas origens mestiças: indígena e africana. 

Formado na Academia Médico-Cirúrgica da Bahia em 1810, depois em Direito na Universidade de Coimbra, Montezuma não atuou em nenhuma das duas profissões. Contudo, começou sua carreira publicando jornais políticos como o Diário Constitucional (1822). O intelectual recebeu o título de Visconde de Jequitinhonha e ocupou os cargos de deputado, diplomata, conselheiro de Estado e Ministro. 

Orador exemplar, Montezuma foi um dos fundadores do Instituto dos Advogados do Brasil, chegando a presidi-lo. Frequentemente chamado de “mulato” e “mestiço” por opositores políticos, o intelectual finalizou a carreira como Senador da Bahia.

Joaquim Cândido Soares de Meirelles

Nascido em 1797, na província de Santa Luzia do Sabará, em Minas Gerais, Joaquim Cândido Soares de Meirelles seguiu a carreira de cirurgião, assim como seu pai. O intelectual se formou na Academia Médico Cirúrgica do Rio de Janeiro (1822) e depois obteve dois diplomas na Faculdade de Medicina de Paris (1827), um de medicina e outro de especialista em cirurgia. Foi presidente da Academia Nacional de Medicina e conselheiro do Imperador.

Meirelles teve uma longa carreira como médico militar, atuando como cirurgião auxiliar no Hospital Militar Real, no Rio de Janeiro (RJ), e depois como Cirurgião Mor no Hospital Militar de Ouro Preto (MG). Por conta do seu posicionamento público antidiscriminatório, Meirelles chegou a ser acusado publicamente de incitar o Haitianismo no Brasil – referência à revolução em que pessoas negras, livres ou escravizadas assumiram o poder no Haiti

Exilado por dois anos após eleição do partido conservador, o intelectual retornou ao Brasil e foi logo eleito deputado pela assembleia provincial do Rio de Janeiro e em seguida pela assembleia geral de Minas Gerais. No fim de sua jornada profissional, Meirelles chefiou o serviço de Saúde da Marinha por 19 anos. 

Joaquim Saldanha Marinho

Formado em Direito pela Faculdade de Olinda, Joaquim Saldanha Marinho nasceu em 1816, na cidade de Olinda, em Pernambuco. Além da advocacia, atuou como jornalista sob o pseudônimo de Ganganelli, publicando artigos no Jornal do Comércio (1827). O intelectual era filho do Capitão Pantaleão Ferreira dos Santos, morto na Revolução Pernambucana, fato determinante para a sua posição política.

A popularidade de seus escritos o levou a ocupar diversos cargos públicos, sendo eleito deputado, presidente da província de São Paulo e de Minas Gerais e, por fim, Senador. Associado à ala radical do Partido Liberal, Saldanha Marinho teve uma importante papel contra a Monarquia portuguesa no Brasil e foi um defensor do fim da escravidão. 

Figura extremamente popular na sociedade, Saldanha Marinho também ocupou uma posição de grande prestígio na Maçonaria, chegando a escrever sobre a necessidade de separar a ação política da influência religiosa na obra A Igreja e o Estado, publicada entre  1873-1876.

A longa caminhada pelo reconhecimento das intelectualidades negras

Para além da importância de ter a história do Brasil vinculada a figuras negras que ocuparam espaços de poder na construção do país, Maria Eduarda Abreu Cavalcante, ao longo de sua pesquisa, chama a atenção para os artifícios comuns realizados pelos intelectuais para conseguir ultrapassar as barreiras raciais da época. Com exceção de Francisco Montezuma, nenhum outro intelectual chegou a se declarar pardo ou mestiço. A performance da branquitude era necessária para ascender socialmente, já que ter qualquer relação com a negritude era considerado um defeito, uma mancha à integridade.  

“Vestir-se como nobre, usar perucas e  maquiagem para disfarçar a negritude era uma maneira de performar a branquitude. Assim como ir para as universidades, ter uma profissão, obter um cargo e entrar para a maçonaria. Quando finalmente ascendiam socialmente, eles aproveitavam para defender ideias de libertação e de direitos civis para sujeitos como eles”, reflete a pesquisadora.

Outro aspecto relevante sobre o percurso comum entre esses doutores negros foi a trajetória acadêmica. Todos eles, a princípio, se formaram em academias brasileiras (que até então não eram universidades) para depois obter os diplomas no exterior. Esse fato é essencial para compreender a estrutura socioeconômica do século XIX. Esses homens, em sua maioria, não vieram de classes sociais abastadas, precisavam ter uma profissão primeiro, adquirir renda e ocupar cargos públicos de baixa hierarquia para só então, mais velhos, conseguirem ir para uma faculdade renomada e ocupar cargos de maior relevância política. 

Aprender sobre a vida desses intelectuais é compreender que a luta de pessoas negras pela educação vem de muitos anos, antes mesmo da abolição da escravatura. A partir dessas trajetórias, é possível refletir a importância não só da Lei de 10.639/03, mas principalmente da Política de Cotas (Lei  nº 12.711/2012). Mesmo com a reserva de vagas, a universidade segue ainda como um ambiente hostil para pessoas negras, que precisam lidar com os diversos marcadores sociais para além da raça. Essas políticas são práticas de equidade necessárias para que o país consiga atenuar as disparidade sociais e econômicas entre indivíduos negros e brancos, causadas por quase 400 anos da exploração de pessoas negras.  

As informações sobre os personagens podem ser encontradas na Dissertação de Maria Eduarda Abreu Cavalcante e em sua Tese de Doutorado em construção.

Referência:

CAVALCANTE, Maria Eduarda Abreu. O Independente: um autor de cor de um jornal moderado na imprensa da Corte (1832-1833). 2025. 120 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2025.

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