Mataram mais um de nossos filhos: morte ao racismo!

Por Márcia Guena*

Não consigo ouvir. Não consigo olhar! Mudem de canal! Não quero ver o rosto dele. Dói demais. Dói demais. Sou mãe negra de um filho de 15 anos. Dói demais. Não quero olhar o rosto angelical de João Pedro Matos Pinto, 14 anos, assassinado brutalmente na última terça-feira (19) pelas polícias do Rio de Janeiro, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro.

“Parentes e amigos dizem que João Pedro Matos Pinto estava brincando com os primos quando traficantes pularam o muro para fugir dos agentes, que chegaram atrás atirando e acertaram o jovem na barriga. Já as polícias alegam que o adolescente foi atingido durante um confronto com esses criminosos”, noticiou a Folha de São Paulo no dia do ocorrido, na notícia que só consegui ler no dia seguinte, ainda sem olhar direito para a foto do menino João.

Criei uma estratégia: não deixar que a dor tome conta de mim e continuar diuturnamente a luta antirracista. Mas não está dando muito certo. Ontem chorei convulsivamente. Choramos, eu, minha mãe e meu filho diante do relato profundo, contundente, indescritível dos pais de João, Neilton Pinto e Denise Roza. É necessário chorar tudo, expurgar essa dor ancestral e cotidiana e nela, recuperar forças.

Pai de João Pedro chora no enterro do garoto – Foto: Guito Moreto / O Globo

 

Se não bastasse tanta dor, um dia depois do homicídio do menino João Pedro, mais um jovem, também chamado João, foi executado pela polícia, em outra favela carioca, Cidade de Deus! João Victor Gomes da Rocha, de 18 anos, foi baleado durante a entrega de cestas básicas da Frente Cidade de Deus (Frente CDD). “O conselheiro tutelar e morador da Cidade de Deus, Jota Marques, disse que o rapaz tinha saído de casa para ir comprar pipa”, de acordo com notícia publicada pela Revista Fórum (20/05) e quem tentou identificar o corpo ouviu a seguinte frase de um dos policias: “Quem não quer ser baleado tem que sair com uma bíblia na mão”, – como publicaram todos os jornais – debochando da vida dos jovens negros e pobres. Corpos e almas que não significam nada para o Estado!

Há anos o país vive uma política de limpeza racial. A política de segurança mata milhares de jovens negros todos os anos, representando 75% das vítimas de homicídios. Estatísticas que cada vez mais se tornam frias, sem rostos, sem políticas anti-morte negra. Números oficiais produzidos pelo próprio Estado, que não mexe uma palha para mudar a política de intervenção nas áreas mais pobres das cidades, de alta concentração de população negra. Ao contrário: acentua a estratégia genocida de intervenção do Estado, oficializando a necropolítica. A pena de morte existe no Brasil apenas para os nossos filhos e filhas negras.

Lutamos por uma política em defesa das nossas vidas. E não é por falta de dados. De acordo com o Atlas da Violência, organizado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em conjunto com o Fórum Nacional de Segurança Pública, ocorreram 65,6 mil mortes violentas em 2017, sendo que mais de 75% vitimaram pessoas negras, sendo que mais da metade correspondeu a jovens entre 15 e 29 anos.

Uma pesquisa realizada pela Fundação Abrinq, divulgada em abril de 2019, mostrou que, em 20 anos, o número de jovens negros assassinados aumentou 429%, ante 102% de jovens brancos.

A população negra tem 2,7 mais chances de ser vítima de assassinato do que os brancos, de acordo com o informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A violência contra pessoas brancas se mantém estável enquanto a taxa de homicídio contra negros cresceu nos últimos anos.  Entre 2012 e 2017 “houve aumento da taxa de homicídios por 100 mil habitantes da população preta e parda, passando de 37,2 para 43,4. Enquanto para a população branca esse indicador se manteve constante no tempo, em torno de 16” (Redação, Exame, 2019). Foram 255 mil mortes de pessoas negras nesse período.

“Entre os jovens brancos de 15 a 29 anos a taxa era de 34 mortes para cada 100 mil habitantes em 2017, último ano com dados de mortes disponíveis no DataSus. Entre os pretos e pardos, eram 98,5 assassinatos a cada 100 mil habitantes. Se considerarmos apenas os homens, a taxa de homicídio sobe para 185. Para as mulheres jovens, a taxa era de 5,2 entre as brancas e 10,1 para as pretas e pardas” (Redação, Exame, 2019).

Mas nós, negras e negros, não estamos inertes diante desses números. Milhares de nós e de movimentos sociais estão alertas, discutindo e agindo pela mudança dessa condição. Não admitimos mais isso! O extermínio realizado pelo poder branco vai parar. Esse é o propósito de nossas vidas negras.

Um ódio visceral toma conta de mim. Um choro convulsivo, um grito:

MORTE AO RACISMO!!!

 

* Jornalista, mestre em integração na América Latina, doutora em História e professora do curso de Jornalismo da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus de Juazeiro (Ba).

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