Crônica Poética – Aquilombar em Tempos de Fim do Mundo

Por Maya Quilolo* / Imagem: Reprodução

 

Nós, como pessoas negras, temos vivido diversos fins do mundo. É a bala no peito de um primo, irmão, pai, tio; é o abandono que garante a força do dia-sim-dia-não na colheita, no sinal, nos coletivos, nas ruas; é a rotina sucessiva de violência nas guerras armadas nos territórios, quebradas, esquinas, becos de todos nós. Nós, população negra do mundo, não temos nada o que lamentar, esse mundo não nos deu nenhuma vantagem.

O COVID 19 é apenas uma das catástrofes que provavelmente vamos viver neste século, consequência que tragédias como o desmatamento da Amazônia anunciam. A fumaça que cobriu a cidade de São Paulo veio como um sinal. Infelizmente, muitos de nós serão arrastados pelas ondas do fim do mundo e isso não se deve a uma catástrofe particular. Cada dia que o homem branco, capitalista, ocidental, constrói uma esperança do seu mundo, nós cavamos uma cova dos nossos. Não é menos verdade que o extermínio da juventude negra, que hoje alcança 30 mil mortos por ano, mate menos que o coronavírus, ou que aliás quaisquer um dos adiamentos do fim do mundo, capitalista, branco, liberal, tenha significado pra nós alguma melhora.

Amazônia em Chamas/Foto: Joedson Alves

Após terem seu mundo restituído, a democracia neoliberal não vacila em apontar as armas para nós, pretos, favelados, periféricos, uma massa que se deve conter, um inimigo que se deve exterminar. No fundo é um cálculo básico: 80 % da população mundial sustenta 20 % da população mundial, e juntos consumimos o que equivaleria a 150% da população mundial. O ensino é ruim, eu sei, mas a fórmula é bastante intuitiva.

Sempre pensei em como seria o fim do mundo, imaginando o apocalipse que nunca chega. Por que a humanidade receberia uma gesto tão generoso da Terra, se traçamos contra ela uma guerra sem fim? A humanidade se gaba de seus aspectos tecnológicos, de que adianta? Toda grande invenção é sempre usada para o mesmo fim: guerra, manipulação, lucro. Um caminho traçado há muito tempo, percorrido todos os dias pelas pessoas que se levantam das suas camas infelizes, e que aceitam a submissão do pão. Difícil falar sobre isso num país que ainda vive o fantasma da fome. E quando não passarmos mais fome? O que iríamos fazer? Morrer então de comer e beber.

O meu fim do mundo começou quando a barragem da SAMARCO estourou em Minas Gerais. CARALHO. Nunca pensei que conseguiriam acabar com um rio de milhões de anos em tão pouco tempo. Arrepiei. Para mim já estava claro, convidamos a humanidade para a sepultura. O rio, água, fonte da vida, confundido com mercúrio, sangue e ferro, que horror. Aquela imagem da barragem se rompendo não sai da minha cabeça, eu sonhei. Sonhei com a América Latina, esse espaço afroindígena, como um grande buraco, assim como desejaram fazer desde que chegaram aqui.  Ouro, prata, ferro, nióbio, metais raros, quem disse? Ouro não se pode comer nem beber. Foram tantas máquinas de guerra desenvolvidas, para que fim?

O fim do mundo se alarga, não será breve. A mudança não será breve. Tudo será lento como o tempo da terra e, mais ainda, como o tempo do entendimento. Porque no início éramos um só continente. Não consigo esquecer dessa imagem tão bonita. O contato de dois hemisférios, uma fase tão nova, ainda magoada, ainda ferida dessa separação.

É tempo de lembrar. Quando o regime colonial abandonou o Brasil e Portugal estava entregue à própria sorte, colonizado pela Espanha, a estrela negra de Zumbi brilhava mostrando aos nossos a direção. Um tipo de consciência que precisamos despontar agora para nos confrontarmos com a destruição, uma consciência Quilombo. É no Quilombo que nós, população negra nas Américas, erguemos as paredes de ideias que possam abrigar nossa potência de vida, tão persistente quanto a saga pelo nosso genocídio, a máquina de moer carne negra que chamamos de Modernidade. Para aquilombar em tempos de fim de mundo é preciso antes criar o quilombo dentro de si. Exercitar o corpo e a mente para as novas idéias.

Fica aqui a dica de canais de leitoras negras e indígenas para sabermos das histórias do nosso povo.

http://leitoranegra.blogspot.com/

https://instagram.com/leiamulheresindigenas?igshid=xew6pavlh2ht

Para crianças:

https://instagram.com/liteafroinfantil?igshid=1c0iyc1jvz51r

Para abrir as portas do corpo e da mente indico aqui um canal de yoga, coisa de preta periférica sim! Nada melhor que uma sarrayoga para levantar o astral.

https://instagram.com/yogamarginal?igshid=h8x7mega6smp

https://linktr.ee/yogamarginal

Para criar quilombo é preciso se alimentar!

Todos estamos apertados e o supermercado não para de aumentar, então fica aqui também a dica do movimento Slow Food  que nos ensina a fazer hortas caseiras e a  aproveitar diversas comidas que jogamos fora.

https://www.slowfood.com/pt-pt/covid-19-perspectiva-da-rede-africana-do-slow-food/

Para sobreviver, temos que fortalecer nossa comunidade!

Deixo aqui os links de associações quilombolas e indígenas que precisam de ajuda para arrecadar alimentos e itens de higiene. São milhares de campanhas! Pesquisem sobre as comunidades quilombolas e indígenas da sua região. Esse link é das associações Amazônicas e Cearenses que até agora estão com mais casos.

https://noscuidamos.foirn.org.br/

https://www.vakinha.com.br/vaquinha/ajuda-comunidades-quilombolas-comunidades-tradicionais

Para aquilo que não tem remédio, precisamos rezar!

Oremos pelos nossos que estão na linha de frente, pais, parentes e amigos que saem todos os dias para trabalhar em meio à guerra invisível. Os cobriremos com a luz de nossas orações agradecendo todos os dias pela vida que nos é dada e protegendo a vida de quem está ao nosso redor.  No mais, precisamos construir o que queremos do fim desse mundo em nossas mentes, para não sermos somente corpos jogados ao relento, com escombros sobre o nosso Ori.

Axé!

 

*Maya Quilolo é quilombola, antropóloga, artista e mestranda em Comunicação pela UFRB. Trabalha no entrocamento entre arte, antropologia e povos e comunidades tradicionais.

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