ENTREVISTA: Relatos de uma jovem indígena baiana em Brasília lutando contra o marco temporal

Desde o dia 26 de agosto, acontece no Supremo Tribunal Federal (STF) um dos maiores julgamentos em relação a demarcação dos territórios indígenas do país. Uma votação que vai determinar se o chamado marco temporal será ou não adotado. Seguir esse critério significa que os indígenas só podem reivindicar a demarcação de terras nas quais já estivessem estabelecidos antes da data de promulgação da Constituição de 1988.

Itocovoty é ativista, comunicadora, é da Campanha Juventudes Que Têm COR-AGEM e foi uma entre os cerca de 6 mil indígenas que ocuparam a Esplanada dos Ministérios no Acampamento Luta Pela Vida

Por Andressa Franco

Desde o dia 26 de agosto, acontece no Supremo Tribunal Federal (STF) um dos maiores julgamentos em relação a demarcação dos territórios indígenas do país. Uma votação que vai determinar se o chamado marco temporal será ou não adotado. Caso aprovado esse critério, significa que os indígenas só podem reivindicar a demarcação de terras nas quais já estivessem estabelecidos antes da data de promulgação da Constituição de 1988.

Em outras palavras, mais de 300 processos de demarcação poderão ter seus rumos definidos contra os povos indígenas. Em reação, foi organizado o acampamento “Luta pela Vida”, que reuniu dos dias 22 a 28 de agosto mais de 6 mil indígenas de 176 povos em Brasília para pressionar os ministros a votarem contra o marco, a maior mobilização indígena desde 1988.

Proprietários rurais argumentam que há necessidade de se garantir segurança jurídica e apontam o risco de desapropriações caso a tese do marco temporal seja derrubada. A proposta também é apoiada por madeireiros, latifundiários e garimpeiros.

Como o status de “repercussão geral” atribuído ao processo pelo STF em 2019, o que os juízes decidirem vai servir de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da justiça no que diz respeito à demarcação de terras. A pressão contra os ministros, portanto, é muito grande por parte desses setores, interessados nas terras dos povos indígenas por estarem fora do mercado de especulação.

Tratam-se de terras preservadas, com nascentes e florestas, isso porque os indígenas se dedicam ao trabalho de restauração dessas áreas. Dados pesquisados por Gerd Sparovek em 2019 mostram que 97.000 fazendeiros juntos são donos de 21,5% do território brasileiro, enquanto mais de 500.000 indígenas vivem em 13% do território, sem possuir a terra e mantendo 98,4% da floresta de pé.

No momento a votação não tem data prevista para continuar, o ministro Alexandre de Moraes pediu vistas do processo. Mas o relator do caso, ministro Edson Fachin, já votou contra a tese, diferente do ministro Kassio Nunes Marques, que votou a favor e empatou a votação. O Procurador Geral da República, Augusto Aras, também já se manifestou no julgamento contra o marco temporal.

Entre os 6 mil indígenas que saíram do seu território para protestar na Esplanada dos Ministérios, estava Itocovoty Pataxó. Filha dos povos Pataxó HãHã-Hãe e Terena, a jovem de 20 anos é comunicadora e atua como ativista com a juventude de três estados: Bahia, Pará e São Paulo.

Engajada no movimento indígena desde 2015, colabora com o projeto de jovens ativistas Engaja Mundo, como comunicadora atua no Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (MUPOIBA). Também é fundadora do perfil Diversidade dos Povos, onde compartilha registros da diversidade dos povos indígenas do Brasil, e faz parte da Campanha Juventudes Que Têm COR-AGEM.

Itocovoty foi para o acampamento Luta Pela Vida representando o projeto Awuré, espaço que considera como família, e onde desempenha o papel de liderança jovem. Durante esse período, viajou para Brasília, perdeu o avô, retornou para seu território, e ainda voltou para a capital federal para somar na II Marcha Nacional de Mulheres Indígenas.

Leia a entrevista a seguir para conhecer a trajetória da jovem comunicadora indígena e os relatos de momentos difíceis, mas também emocionantes vividos por ela e seu povo no acampamento.

Como se deu sua introdução na luta pelo movimento indígena organizado?

Eu vejo que nós, juventude indígena, temos um papel fundamental dentro do nosso território seja nos processos de demarcação, nos movimentos indígenas, e principalmente nos espaços de poder. Precisamos ecoar as nossas vozes e eu sempre digo que: o celular é o nosso arco e a internet é a nossa flecha, precisamos utilizar a nosso favor, em prol da nossa luta, em prol do nosso povo. A minha primeira ida a Brasília foi no Acampamento Terra Livre (ATL) 2015 e de lá pra cá não parei mais. E o que ficou muito marcado dentro de mim com essa experiência, foi que nós estávamos em uma mobilização pacífica, e os jornais de Brasília e várias mídias falaram que nós estávamos atacando, que nós estávamos sem o que fazer em Brasília. E também os policiais atacaram o nosso povo com bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha, nesse ATL tinham vários anciões, e muitas crianças indígenas, tinha a força e a presença da juventude indígena também. E eu percebi a força que nós temos no momento que a minha mãe foi atingida por uma bala de borracha, eu estava distante de todos os parentes do meu povo, mas estava próximo aos parentes Potiguara e eles me viram caindo no chão e me pegaram, me abraçaram, me deram vinagre para lavar o olho, porque as bombas estava muito fortes, o gás lacrimogênio estava ardendo o meu olho, me sufocando, e me retiraram do local. E eu vejo a importância dessa coletividade, da união, da preocupação com todos no movimento indígena. Quando estamos nas mobilizações, nos preocupamos com todo mundo, de grande a pequeno. Então quando um parente é atingido por uma bala de borracha, por um gás lacrimogênio, sentimos na pele. Isso foi uma vivência muito forte para mim, mas foi muito importante para o meu processo de força e resistência. A luta é assim: contínua.

“Enquanto juventude indígena precisamos ecoar as nossas vozes e eu sempre digo e reforço que: o celular é o nosso arco e a internet é a nossa flecha, precisamos utilizar ao nosso favor”

Como foi que você chegou em Brasília para o Acampamento Luta Pela Vida? Quando essa articulação para a mobilização começou?

Sempre as nossas mobilizações acontecem antes, estamos na articulação dois, três meses antes, para quando chegar o mês certo do nosso evento estar tudo OK. Porque até conseguir ônibus, recurso, parceiro que nos apoie, precisa ter toda essa logística e articulação interna. Eu saí do meu território no dia 21 de agosto e cheguei no acampamento Luta Pela Vida em Brasília no dia 22. Na nossa saída sempre entoamos os nossos cânticos, fazemos uma forte reza com proteção aos nossos e principalmente aos demais parentes que estavam a caminho de Brasília. E quando chegamos no acampamento fizemos o mesmo, um grande ritual de agradecimento e principalmente de fortalecimento para nossa caminhada durante a semana.

De agosto para setembro a pauta indígena tomou conta das manchetes, tanto pela votação do Marco Temporal com o acampamento Luta Pela Vida, considerada a maior mobilização indígena desde 1988, como pela II Marcha das Mulheres Indígenas. Como uma jovem indígena, qual o significado de vivenciar esse momento para você?

É muito emocionante de ver a nossa força, a nossa espiritualidade e a nossa potência nesse momento de luta e resistência do meu povo e dos demais parentes. Porque nós não somos somente um povo, nós somos diversos, nós nunca estamos sozinhos na luta. No acampamento algumas vezes eu me sentia muito sozinha, e sempre os meus parentes e até os mais velhos, os anciões, vinham até a mim e falavam: “Minha filha, na nossa luta, na nossa caminhada, nós nunca estamos sozinhos, sempre estamos com os nossos”. A luta pode ser difícil, mas é pela vida, e nunca estamos sozinhos, estamos com as nossas forças ancestrais e nós sempre iremos lutar pelo bem maior, que é a nossa vida e das futuras gerações, eu acredito nisso. Cada movimento indígena que eu participo me fortalece ainda mais. Eu saio mais fortalecida, com mais conhecimento e é isso o movimento indígena: é força, potência, resistência e diversidade.

II Marcha das Mulheres Indígenas – Imagem: Duda Dussi

Como foi receber a notícia do falecimento do seu avô no acampamento, e retornar para a Marcha?

No dia 4 de setembro eu tive uma notícia muito triste no acampamento. Meu avô tinha falecido, eu tive que sair às pressas e os meus parentes ficaram bastante preocupados comigo e eu também fiquei com o coração muito partido pelos dois lados. Saí do acampamento, mas falei assim, “Eu vou, mas se eu me fortalecer eu volto”. E eles me deram total suporte, eu só queria sair imediatamente do acampamento e ver a minha família. Passaram em torno de 4 dias e já tinha começado a II Marcha das Mulheres Indígenas, eu não pude participar presencialmente, mas pude acompanhar na internet. O meu desejo era estar no espaço da luta juntamente com todo mundo e eu decidi retornar porque precisava fazer minhas rezas, entregar o espírito do meu avô para os encantados, que o recebam de braços abertos. Quando eu cheguei, todo mundo me deu o apoio, entoamos cânticos, fizemos os nossos rituais em fortalecimento, e essa coletividade foi muito importante. Logo quando eu cheguei no acampamento eu me senti em casa, a energia espiritual me acolheu. E uma coisa que eu pude avaliar é que nós nunca estamos sozinhos, isso é verídico. Fiquei pouco tempo lá, somente uma noite. Foi um processo de despedida, foi muito emocionante reencontrar e me despedir dos parentes e parentas de outros estados.

II Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília – Imagem: Dheik Praia

“Brasília sentiu a potência de nós, povos indígenas, a resistência dos povos originários”

Quais experiências desse período você destacaria? Os melhores momentos, os mais difíceis e os mais memoráveis até aqui.

Tivemos vários momentos incríveis de altas risadas, acolhimento, partilhas, vivências, saberes, troca de experiências e principalmente, o que eu destacaria, os nossos rituais. A força dos cânticos indígenas de cada etnia, de cada povo, de cada estado. Brasília sentiu a potência de nós, povos indígenas, a resistência dos povos originários. Dos momentos mais difíceis pra mim, foi que eu passei mal porque nos movimentos indígenas eu estava bastante corrida na questão da comunicação, e mal conseguia me alimentar, estava corrido para todo mundo. Minha pressão caiu e todo mundo ficou bastante preocupado, mas recebi cuidados médicos e ficou tudo bem. Outros momentos ruins aconteceram na mobilização, onde uma bolsonarista estava nos seguindo e falando bastante coisas horríveis para nós, porém a gente não ‘deu bola’ e continuamos a nossa mobilização porque ela era somente uma pessoa, e nós estávamos em quantidade. Quanto mais ela falava, mais a gente entoava os nossos cânticos. Também teve a tentativa dos bolsonaristas entrarem no acampamento ameaçando os parentes com arma de fogo. Teve uma mulher que entrou no acampamento gravando e falando que “foi atacada pelos índios”, e que quebraram a câmera dela. Os policiais tiraram ela do acampamento porque na verdade não era nada disso, ela só estava querendo mídia, chamar atenção. Muita falta de respeito com nossos povos indígenas, que estamos ali debaixo de sol, chuva, frio, lutando. Tivemos vários processos ruins dentro do acampamento e nas mobilizações. Porém, o que motivava a permanecer na luta era a nossa união, e principalmente as partilhas de saberes durante a noite em rodas de conversas, foi incrível.

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