Letalidade policial na Bahia nacionaliza debate denunciado pelos movimentos negros do estado há mais de 10 anos

Especialistas e ativistas explicam os fatores que nos trouxeram até os recordes atuais, a responsabilidade do PT e em quais caminhos a longo prazo é preciso investir 

Especialistas e ativistas explicam os fatores que nos trouxeram até os recordes atuais, a responsabilidade do PT e em quais caminhos a longo prazo é preciso investir 

Por Andressa Franco

Imagem: Morgana Damásio

Nos últimos dias 4 e 5 de setembro, os moradores dos bairros Alto das Pombas e Calabar, em Salvador (BA), tiveram suas rotinas alteradas devido a confrontos entre facções locais e a Polícia Militar. Populares foram feitos de reféns; moradores foram obrigados a deixar suas casas; escola, mercados, unidades de saúde e a Universidade Federal da Bahia (BA) suspenderam atividades. No balanço da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), 11 pessoas foram mortas e oito foram presas.

O Alto das Pombas e o Calabar são bairros de maioria residente negra e que resistem a processos de gentrificação. São vizinhos a bairros nobres como a Graça, e áreas valorizadas, como a Avenida Centenário e os bairros Jardim Apipema e Ondina.

As cenas de tiroteios em meio a civis repercutiram fortemente nas redes sociais, agravando as pressões e cobranças ao governo estadual sobre sua política de segurança pública. Em julho, a repercussão dos dados do 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública e o quase inédito interesse da mídia hegemônica pela letalidade policial na Bahia nacionalizou o debate denunciado pelos movimentos sociais do estado há mais de 10 anos.

Oficialmente, pela primeira vez a polícia da Bahia ultrapassou a do Rio de Janeiro no número de mortes em intervenções. Foram 1.464 pessoas mortas, ou seja, cerca de quatro pessoas por dia. Os dados são contabilizados desde 2015. Naquele ano, o número de mortes por intervenções policiais na Bahia foi de 354, ou seja, em sete anos a alta foi de 313%. Em 2022, 22% das mortes violentas no estado foram de responsabilidade da polícia.

Eduardo Ribeiro é coordenador executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas e explica que a reorganização do cenário do tráfico de drogas do estado a nível nacional é um dos fatores que contribui para esses números e intensifica os conflitos dentro das comunidades. Mas o problema tem uma profundidade muito maior.

O que nos trouxe até aqui

Os números não são novidade para a população baiana, que nos últimos anos têm perdido a conta das “balas perdidas” e chacinas promovidas pela polícia militar. Vale destacar que na Bahia, segundo dados do Observatório de Segurança Pública em 2022, e também longe de qualquer surpresa, a cada 100 pessoas mortas pela polícia, 98 eram negras.

De acordo com o estudo “Eu sou parte de você, mesmo que você me negue”, produzido e divulgado pela Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas em 2021, embora os números de apreensão de drogas sejam superiores em territórios ricos e brancos da capital baiana, como Barra e Pituba, os tiroteios em ações policiais acontecem nos bairros que têm maioria da população residente negra.

Para Daiane Ribeiro, assessora jurídica do projeto do Instituto Odara “Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar”, que acompanha famílias de vítimas do Estado, o governo tem tratado os dados como eventuais excessos, quando essa é a política de segurança adotada nos últimos 17 anos pelas gestões petistas. 

“Há manutenção e até acirramento de uma política beligerante, tendo como justificativa uma suposta guerra às drogas. Mas com uma atuação letal em determinados bairros e tendo como alvo determinados corpos”, avalia a advogada. Ela aponta ainda entre os fatores para o recorde de letalidade, a criação e ampliação de Unidades Especializadas de Policiamento, como RONDESP, BOPE e PETO, que tem um alto grau de letalidade, em paralelo ao pouco investimento nos departamentos de investigação e inteligência. 

Daiane Ribeiro é assessora jurídica do projeto do Instituto Odara “Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar” – Imagem: Arquivo Pessoal

Cecília Oliveira é diretora do Instituto Fogo Cruzado, e em um ano de atuação na Bahia, ela aponta alguns fatores que influenciam os dados do Anuário: falta de transparência; de dados de qualidade para subsidiar políticas públicas; e de vontade política para abandonar os métodos de combate à violência que já se mostraram ineficazes.

“Falta o básico: elaborar um plano de redução da violência policial e enfrentamento a milícias e grupos de extermínio. O Ministério Público precisa atuar firmemente para responsabilizar desvios e má atuação”. A diretora ressalta ainda a ausência de um plano nacional de segurança pública que norteie os estados. “O Sistema Único de Segurança Pública não saiu do papel. Isso tudo permite que se chegue onde chegamos.”

A conta do PT

O levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública chegou a ser descredibilizado pelo ex-governador e atual ministro da Casa Civil Rui Costa (PT), que se notabilizou por comemorar a chacina do Cabula, em 2015, e cujo partido está no quinto mandato seguido ocupando a cadeira do Palácio de Ondina.

A primeira manifestação do atual governo, de Jerônimo Rodrigues (PT), foi para afirmar que as pessoas mortas em confrontos com a polícia são “homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes, entre outros criminosos”.

“O que a Secretaria afirmou é que embora não exista pena de morte segundo a nossa legislação, em determinados territórios isso ocorre. Em muitos casos com pessoas que sequer cometeram crimes. Declarações como essas violentam as famílias duplamente, que precisam sair em defesa da honra dos seus familiares”, critica Daiane. 

Eduardo Ribeiro, afirma que a declaração naturaliza a vinculação do crime às comunidades negras. “Nossos bairros não são violentos, mas violentados, seja pela ocupação militar do estado, seja pela ausência de políticas públicas.”

Eduardo Ribeiro é coordenador executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Droga – Imagem: Reprodução

O Afro Gabinete de Articulação Institucional e Jurídica (AGANJU) se manifestou em nota a respeito das declarações do governo. A organização classificou a política de segurança pública do estado como “genocídio negro”.

O grupo destacou que desde 2007, em diversas reuniões realizadas com os governadores Jaques Wagner e Rui Costa, foram apresentadas denúncias de diversos episódios e uma série de proposições de mudanças dirigidas à reformulação das políticas de segurança pública na Bahia. De acordo com a nota, as propostas não só foram “ignoradas”, como as gestões petistas implementaram medidas que agravaram o problema.

Fogo Cruzado na Bahia

O Fogo Cruzado chegou na Bahia em julho de 2022. Cecília conta que a organização sabia pouco sobre a violência local, porque o estado não produz dados de qualidade. “Hoje podemos confirmar como a violência armada é grave no estado.”

Nesse período, o Instituto constatou que 34% dos tiroteios ocorreram durante ações policiais; e, em média, 39 pessoas são baleadas por mês durante ações ou operações policiais. Os homens figuraram como a maioria entre as vítimas: 1.259. Do total de 1.422 vítimas registradas, 358 eram negras, 51 eram brancas, 1 era amarela e 1012 não foram identificadas racialmente. Além disso, 13 crianças e 44 adolescentes foram baleados.

O Instituto registrou ainda 39 chacinas (quando há 3 ou mais mortos) em Salvador e Região Metropolitana, 27 delas durante operações ou ações policiais. 

Cecília Oliveira é diretora do Instituto Fogo Cruzado – Imagem: Ariel Zambelich/The Intercept
Famílias em luto e em luta

Em Salvador (BA), apenas em 2023, foram 11 crianças baleadas, de acordo com o Instituto. Entre elas, Gabriel Silva, de 10 anos, que, conforme relato de sua mãe, Samile Costa, estava jogando no celular na calçada de casa, no dia 23 de julho deste ano, quando equipes da 52ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM) chegaram na localidade em uma viatura disparando sem alvo específico.

Uma dor compartilhada por muitas outras mães, como Dona Ângela de Jesus Nogueira, que se apresenta como mãe de uma vítima do Estado: Geovanna Nogueira, assassinada em 2018. A menina de 11 anos estava abrindo o portão de casa para receber o avô, quando foi alvejada com um tiro na cabeça pelos agentes da 48ª CIPM, que realizavam uma ação no bairro Jardim Santo Inácio. “Eu não conseguia encarar eles [os policiais] de jeito nenhum porque eu imaginei que como já tinham feito com ela, fariam com todo mundo.”

Ângela de Jesus Nogueira, mãe de Geovanna Nogueira, mais uma vítima do Estado – Imagem: Reprodução

O policial acusado pela morte da menina foi absolvido em júri popular no último dia 21 de agosto. Na família, a memória que fica é de uma menina atenciosa. “Todo mundo sente falta”, lamenta Ângela.

Também em agosto, ganhou repercussão nacional o assassinato da yalorixá e líder quilombola Mãe Bernadete, na Comunidade Remanescente de Quilombo Pitanga de Palmares, localizada em Simões Filho (BA). A ativista estava no Programa Estadual de Proteção de Defensores de Direitos Humanos, mas os agentes da polícia iam ao local apenas por 20 ou 30 minutos por dia, segundo o filho da vítima.

Nenhuma dessas mortes, no entanto, indignou ou comoveu tanto Jerônimo Rodrigues, quanto a presença de jornalistas do Profissão Repórter na Bahia. O programa exibido na Rede Globo no dia 15 de agosto, ouviu as versões dos familiares de vítimas do Estado, expondo a violência policial, o despreparo e a truculência dos agentes.

“Respeitem a nossa Polícia Militar, o que vocês estão fazendo é irresponsabilidade. O que nós vimos com a televisão vindo aqui foi uma encomenda”, bradou o autointitulado “governador dos direitos humanos” em uma coletiva de imprensa.

@dudabocao_oficial

Ao comentar a reportagem do Profissão Repórter, da TV Globo, criticando a atuação da Polícia Militar da Bahia, o governador Jerônimo Rodrigues (PT) defendeu a corporação e insinuou que a matéria foi “encomendada”.
”Eu quero pedir para aqueles que ficam mandando recados errados. Respeitem a nossa polícia militar, o que vocês estão fazendo com a polícia militar é irresponsabilidade. O que nós vimos, como a televisão vindo aqui fazer [reportagem], aquilo parecia que era encomenda, foi uma encomenda”, disse Jerônimo sem citar nomes. #jeronimorodrigues #profissaoreporter #pmba #pt #tvglobo #tiktoknoticias

♬ som original – Zé Eduardo

Caminhos no curto e no longo prazo 

Durante o momento de indignação, Jerônimo ainda citou mais investimentos do governo federal na segurança pública, garantidos pelo presidente Lula em reunião. “Espero corrigir o suficiente para sair dessas posições”, completou.

A correção foi levada tão a sério, que apenas uma semana depois da divulgação dos dados do Anuário, entre 28 de julho e 4 de agosto, foram noticiadas 32 mortes decorrentes de intervenção policial na Bahia, que estão sob investigação do MP-BA. Além dessas, o IDEAS – Assessoria Popular relatou ação policial realizada no dia 04 de agosto na Gamboa, resultando em duas vítimas letais, sendo um adolescente.

Diante disso, o petista insistiu no discurso de diálogo com o governo federal, mas sem anunciar medidas encabeçadas pela própria gestão.

Para Eduardo Ribeiro, não é necessário mais investimento na SSP, mas sim na política de segurança pública, que não deve ser apenas protagonizada pela Secretaria. “É sobre o que as Secretarias de Educação; Cultura; Direitos Humanos; Trabalho, Emprego e Renda podem contribuir para a produção de uma segurança pública preventiva e a partir da ampliação dos direitos das comunidades atingidas e pelo controle social das polícias”. O historiador também chama atenção para a baixa possibilidade de participação da sociedade civil, com um Conselho de Segurança Pública pouco atuante nos debates sobre direcionamento do orçamento. “Mais dinheiro na SSP é colocar mais dinheiro nas polícias e repetir o fracasso de uma política de segurança pública baseada no confronto.”

A adoção das câmeras corporais nas fardas policiais são um consenso entre os especialistas ouvidos pela Afirmativa, mas não resolvem sozinhas o problema.

“As câmeras podem ser parte de uma solução maior. Elas precisam caminhar junto com diretrizes claras de como deverão ser usadas, como serão as imagens armazenadas, quem terá acesso e o que será feito com elas”, pontua Cecília. No âmbito da tecnologia, ela lembra que, desde o primeiro semestre de 2022, cada prisão feita a partir do reconhecimento facial, que é falho, custou, em média, R$ 875 mil.

A longo prazo, é preciso mais. Para Cecília, as prioridades devem ser melhorar as informações sobre mortes violentas e sobre as políticas implementadas no estado; aprimorar os objetivos e indicadores do plano estadual de segurança; criar uma comissão independente de supervisão da atividade policial; e elaborar um plano estadual de controle de armas de fogo, suas peças, componentes e munição.

Uma medida considerada fundamental por Dudu, é o investimento na produção de dados. “É preciso investir em ciência para perceber inclusive que as operações com letalidade não alteram o quadro da violência urbana.”, finaliza.

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