No extremo sul da Bahia, Assentamento Baixa Verde denuncia violência e negligência estatal há mais de uma década

Em meio a ameaças de morte e disparos de arma de fogo, famílias do Movimento de Luta pela Terra resistem

Por Karla Souza

O Assentamento Baixa Verde, localizado na Fazenda São Caetano, em Eunápolis (BA), tornou-se símbolo da luta pela terra. Ocupada pelo Movimento de Luta pela Terra (MLT) há 16 anos, o território enfrenta conflitos intensos e constantes invasões. Desde 2010 as famílias assentadas denunciam casos de violência, como casas queimadas, cercas destruídas, roubos de produção e ameaças frequentes, devido a presença de invasores.

Mesmo com uma decisão judicial que garante a desocupação das áreas destinadas ao MLT e invadidas por membros de outro grupo, os beneficiários ainda não conseguem acessar os lotes e seguem vulneráveis a novos ataques, enquanto aguardam uma ação efetiva do Estado para resolver a situação.

Histórico do conflito

A história do Movimento de Luta pela Terra começa há 30 anos, no território do extremo sul da Bahia, quando um grupo de lavradores e lavradoras se organizam para defender o direito à terra. Em 2008, este movimento ocupa a Fazenda São Caetano, uma terra devoluta – sob o domínio do Estado e sem utilização – localizada no município de Eunápolis, nascendo assim, o Assentamento Baixa Verde, organizados como Associação Comunitária dos Produtores Rurais da Baixa Verde (ASCOMBAVE). De acordo com membros do MLT, a terra devoluta se encontrava sob posse irregular de empresa Veracel Celulose, propriedade da multinacional Sueco-finlandesa Stora-Enso e da empresa brasileira Fibria, que atua com o plantio de eucalipto no Sul e Extremo Sul da Bahia desde o ano de 1991. 

Após dois anos de ocupação, o MLT conquista na justiça o direito provisório à terra, concedido pela Vara da Fazenda Pública da Comarca de Eunápolis, garantindo a permanência dos membros no assentamento. Conforme a assessoria jurídica do assentamento, no mesmo ano, um grupo organizado, ligado à Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado da Bahia (FETAG-BA) invadem o assentamento, iniciando o conflito violento e ameaçando as famílias que ocuparam a terra desde o princípio, ao mesmo tempo que, junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Eunápolis, iniciam o processo de reivindicação da área assentada pelo MLT. Lideranças do MLT destacam ainda que, por conta da ocupação e o interesse econômico na área, a empresa Veracel é  responsável por incentivar diversos conflitos de terra, desmatar áreas da Mata Atlântica e ocupar de forma irregular as terras do Estado. Em 2016 houve um acordo entre o Estado, a empresa Veracel Celulose e o MLT, representado pela ASCOMBAVE, que determinou o processo de seleção das famílias para o assentamento.

Desde a invasão da FETAG-BA, sucedida entre 2010 e 2021, o Governo do Estado da Bahia, por meio de diversos setores, realizou tentativas de negociação entre os dois movimentos envolvidos no conflito. Esse período foi marcado por intensas ações violentas e ameaças contra membros do MLT, que foram incluídos no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas do Estado da Bahia (PPDDH-BA). 

“A Bahia é  o estado com o maior número de defensores em proteção, com uma diversidade de contextos e desafios. Trabalhamos com estratégias específicas para cada situação, garantindo que o programa seja um espaço de apoio efetivo para quem está sob ameaça”, afirma Wagner Moreira, coordenador do IDEAS – Assessoria Popular, organização responsável por administrar o PPDDH Bahia desde dezembro de 2022. Ele destaca que o PPDDH não resolve conflitos, “mas é crucial nas articulações para diminuir os riscos e possibilitar que defensores e defensoras continuem sua luta em segurança”.

Imagem: Jornalistas Livres

Para minimizar os conflitos, em 2018, o Governo do Estado, por meio de Portaria da Secretaria de Desenvolvimento Rural do Estado da Bahia (SDR), realizou uma nova tentativa de acordo, dessa vez com a FETAG, para as terras serem divididas meio a meio, garantindo metade da terra para assentados do MLT e a outra metade para assentados da FETAG. No entanto, integrantes do MLT denunciam que cerca de 10 lotes  pertencentes a assentados do movimento, permanecem ocupadas pela FETAG-BA, impossibilitando os membros de acessarem seus lotes. No início do ano de 2024, houve nova decisão judicial, determinando que as pessoas que estão ocupando o território de forma irregular saíssem do  local, intensificando as ameaças  e violências aos assentados do MLT. 


Tensão no território

Em agosto de 2024, uma jovem assentada de apenas 14 anos descreveu momentos de terror vividos no território. Ao passar por uma área coletiva, ela e seus colegas foram surpreendidos por três homens armados. “A única coisa que passava pela nossa cabeça era que íamos morrer”. Membros da comunidade relatam que, desde a publicação de uma denúncia no site Teia dos Povos, a violência se intensificou com novos ataques e ameaças.

Escute o áudio

Famílias do MLT relatam que enfrentam ameaças há mais de uma década, e atribuem aos invasores de terras ociosas e à FETAG-BA. A comunidade afirma que boletins de ocorrência foram registrados, provas técnicas coletadas, mas nenhuma prisão foi realizada.

De acordo com D.E.*, um dos assentados, já ocorreu no ano passado outro atentado na comunidade, com novos disparos de armas de fogo e ameaças. “Estão [invasores do território destinado ao MLT] fazendo até documentário, espalhando fake news aqui na região e descredibilizando a gente, fazendo capas de jornais e, ao mesmo tempo, praticando violências contra as famílias do território. A gente precisa que o estado se pronuncie oficialmente, através dos canais de comunicação, para garantir alguma segurança para as famílias do território”, denunciou.

L.O.*, integrante da ASCOMBAVE, descreve como a violência e as invasões têm impactado diretamente a comunidade desde quando começou a batalha pela posse das terras. Entre os desafios mencionados estão casas queimadas, cercas cortadas, produção roubada e ameaças de tiro, que afetam homens, mulheres, jovens e crianças.

Sobre a insegurança e as constantes ameaças enfrentadas, E.G.*, integrante da ASCOMBAVE, detalhou as medidas adotadas para garantir a segurança da comunidade. Segundo ele, a principal estratégia tem sido a união entre os moradores. “Nós montamos uma estratégia pessoal para garantir nossa segurança. Orientamos todos a nunca estarem em um local sozinhos, sempre em grupos, pois isso tem inibido ataques diretos”, relata. De acordo com a liderança, apesar desses esforços, a insegurança tem causado muita tensão. Em meio a essa luta, o MLT denuncia a falta de ação efetiva dos órgãos responsáveis. As famílias aguardam há anos por uma solução e pela garantia de que poderão viver e trabalhar em paz.

L.O também destacou a morosidade das autoridades para resolver a situação. Ela afirma que “o estado fez vista grossa desde o início” e que o problema se arrasta há anos. “Nós dividimos a área para resolver o problema de todos, mas o estado não cumpriu sua parte”, enfatiza sobre a frustração com a falta de apoio das secretarias e do governo estadual. A integrante da ASCOMBAVE destaca também o impacto psicológico das ameaças contínuas. “Nós temos mulheres com depressão, pessoas com problemas de coração e diabetes causados por essa luta e pela morosidade do Estado”. Ela ressalta que, apesar de todos os esforços da associação para apoiar emocionalmente seus membros, a falta de resolução agrava a situação. E.G. mencionou também sobre o impacto na rotina e saúde mental das crianças: “Orientamos os pais para estarem sempre atentos, mas isso por si só não é suficiente. As autoridades precisam ser mais ativas para minimizar essa violência”, disse.Até a publicação desta matéria, a Veracel Celulose e a FETAG-BA não responderam ao contato da Afirmativa para apresentar suas versões sobre o caso.



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