Quem são os africânderes? Brancos herdeiros do apartheid na África do Sul que buscam refúgio nos EUA

Cerca de 49 africânderes entraram nos EUA como refugiados este ano
Imagem: Michael Candelori / Ted Eytan / GovernmentZA / Flickr

Por Matheus Souza e  Andressa Franco

Na última quarta-feira (21), o presidente dos EUA, Donald Trump, tentou constranger o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, durante uma reunião na Casa Branca. No encontro, Trump solicitou para sua equipe que exibisse vídeos de um suposto “genocídio” da população branca no país africano. 

Surpreso com a atitude – e com o vídeo – Ramaphosa respondeu ironicamente, dizendo que “gostaria de saber onde fica isso”, questionando a veracidade da acusação. Mais tarde, constatou-se que tal como acusação de genocídio, o vídeo exibido por Trump era falso e foi retirado de contexto.  

Para compreender o porquê deste encontro e as razões pelas quais Trump dissemina a ideia de uma perseguição a um grupo étnico branco conhecido como “africânderes”, é preciso entender alguns pontos desta narrativa que se desenrola entre os dois países desde o início deste ano.

No dia 7 de fevereiro, Trump emitiu uma ordem executiva publicada no site oficial da Casa Branca onde denuncia Ramaphosa pela promulgação da ‘Lei de Expropriação /13 de 2024’, que concede ao estado o poder de confiscar terras sem a necessidade de pagar indenizações. A medida do presidente sul-africano, que sofreu resistência dentro do Congresso, surge como uma tentativa de reparação após mais de 30 anos do fim do regime de apartheid no país, onde a população negra ainda é minoria entre os donos de terras agrícolas.

No documento, o presidente estadunidense afirma que o objetivo da lei é “desapropriar terras agrícolas da minoria étnica afrikaners [africânderes, em português]” e que tais políticas governamentais estariam sendo utilizadas para “desmantelar a igualdade de oportunidades em emprego, educação e negócios, além de retórica odiosa e ações governamentais que alimentam a violência desproporcional contra proprietários de terras racialmente desfavorecidos”.

No último dia 12 de maio, um avião com 49 sul-africanos brancos pousou em Washington (DC), nos EUA, se tornando o primeiro grupo de africânderes a desembarcar em território estadunidense como refugiados. Resguardados por um programa de reassentamento, esses indivíduos estão sob proteção direta de Trump, que alega protegê-los de uma “matança em larga escala de agricultores brancos”, chegando até mesmo a utilizar a palavra “genocídio”.

Um breve contexto sobre a origem dos africânderes mostra que há de fato um genocídio em sua história, mas não o descrito por Trump. Durante o período colonial, os invasores brancos em território sul-africano – vindos especialmente da Holanda, França e Alemanha – obrigaram a maioria negra da população local a se instalar em bairros segregados das cidades e em reservas rurais. Isso aconteceu devido a uma lei de 1913, que proibia negros de adquirir terras fora dessas reservas, conhecidas como “bantustões” (terras natais). 

Essas terras, que abrigavam a maioria negra (80%) do país, ocupam hoje 13% do território sul-africano, o que causa uma inequidade considerável entre as terras ocupadas pelos negros e brancos do país. Os herdeiros dos colonos – os africânderes – formam cerca de 5% da população, e com a aprovação da Lei de Expropriação, sentiram que seus privilégios estavam ameaçados, decidindo então apelar ao governo dos EUA por ajuda.

Um olhar in loco

Para entender melhor a questão dos africânderes e o porquê do interesse do governo Trump nestas pessoas, conversamos com a jurista sul-africana Sibongile Ndashe, diretora executiva da Iniciativa para Litígios Estratégicos na África (ISLA), com longa experiência na prática jurídica, defesa e pesquisa de gênero e sexualidade, além de atuar perante os Sistemas Africanos de Direitos Humanos.

 jurista sul-africana, diretora executiva da Iniciativa para Litígios Estratégicos na África (ISLA) com atuação nos Sistemas Africanos de Direitos Humanos. – Imagem: Roseta Msimango

Ndashe descreve a situação dos africânderes como “absurda”. Segundo ela, a decisão dos EUA de endossar a ideia de um “genocídio branco” e abrigar esses descendetes de colonos mostra que “fatos não são necessários em seu sistema de crenças”. A pesquisadora explica que, apesar de diferentes estudos e relatórios desmascararem essa conspiração de direita, o governo estadunidense decidiu segui-la mesmo assim. 

“Para tornar esse mito realidade, eles decidiram criar um procedimento especial para permitir que pessoas brancas se mudem para os EUA. Eles os chamam de refugiados, mesmo que não atendam à definição legal de refugiado. Enquanto todos os outros programas de reassentamento de refugiados foram suspensos”, afirma Sibongile Ndashe.

A jurista explica que, assim como no Brasil, a questão racial é um problema vivo e constante na África do Sul. Devido a uma desigualdade sistêmica profundamente arraigada no país, a face da pobreza continua sendo predominantemente negra e, a da riqueza, predominantemente branca. “Há tensões em torno de certos grupos de pessoas brancas, e africânderes, em particular, que escolheram viver isolados em um lugar chamado Orania. Politicamente, conviver com pessoas que querem voltar aos ‘bons velhos tempos’ pode ser irritante. Já houveram incidentes, incluindo contestações judiciais esporádicas, sobre a preservação da cultura, língua e identidade africânderes”, conta.

O governo de Donald Trump recebeu os africânderes sob a alcunha de “refugiados” – Imagem: Michael Candelori / Mark Hodson Photos

Apesar das pequenas tensões ao longo de 30 anos de história, os africânderes e a população negra se “toleram” de maneira cordial, na maioria das vezes. Essa informação é importante para salientar que a narrativa de uma violência sistêmica contra este grupo é falsa. “A África do Sul tem uma alta taxa de criminalidade. O número de africânderes assassinados é insignificante quando comparado às estatísticas gerais de criminalidade”, detalha Ndashe.

Elon Musk, empresário proprietário da Tesla e do X (antigo Twitter), atua como conselheiro da Casa Branca desde o início do governo Trump e por ser um grande defensor dos africânderes, é responsável por instigar o conflito diplomático entre EUA e África do Sul. Nascido no país africano, apesar de uma origem muito similar,  Elon nega que faça parte dos africânderes, porém compartilha do sentimento de que há uma “perseguição racial contra brancos” no país. 

“Ele quer menos regulamentação, ataca regularmente as medidas de ação afirmativa da África do Sul que buscam desfazer a desigualdade racial e espalha desinformação”, explica Ndashesobre o posicionamento do bilionário.

Na África do Sul, a posição do governo norte-americano causa preocupação sobre possíveis sanções. A ajuda humanitária ao país foi cortada, altas tarifas foram impostas e o embaixador expulso da embaixada nos EUA. Ndashe explica que, apesar do boicote estadunidense, hà esperança para o avanço das reparações do povo negro sul-africano. “O tema da União Africana para 2025 é Justiça para africanos e afrodescendentes por meio de reparações. Há esforços renovados para levar as conversas adiante no continente […] e esperança de que essa legislação possa contribuir de alguma forma para remediar injustiças passadas”, conta.

A jurista explica que há uma responsabilidade moral, legal e ética para garantir que as reparações não acabem sendo apenas um debate global. Ela finaliza enfatizando que “diante de desigualdades tão gritantes e ainda convivendo com gerações que prosperaram e sofreram sob o apartheid, a discussão precisa ser trazida de volta para casa”.

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