Danrlei Moreira e Elaine Sousa foram reconhecidos pelos artigos “Cês acharam que eu ia morrer cedo” e “Branca é lésbica e preta é sapatona oh o erro?!”
Por Andressa Franco
No mês em que a Lei de Cotas completa 10 anos, os estudantes negros da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Danrlei de Oliveira Moreira e Elaine Borges Sousa receberam respectivamente o Prêmio Lélia Gonzalez de melhor artigo, e a Menção Honrosa do Prêmio Lélia Gonzales e Lévi-Strauss. Os títulos foram concedidos pela Associação Brasileira de Antropologia durante a 33º Reunião Brasileira de Antropologia, ocorrida de 28 de agosto a 3 de setembro.
“A múltipla produção acadêmica da gente se dá por isso [Lei de Cotas], esse acesso mostra o quão foda a gente pode ser.”, afirma Danrlei. “É o movimento de maior força antirracista que aconteceu nos últimos anos, e ainda assim é muito pouco quando a gente relaciona o índice de pessoas negras na universidade e a taxa de mortalidade.”
O artigo do jovem de 28 anos, cientista social e mestrando em Ciências Sociais, Cultura, Desigualdade e Desenvolvimento pela UFRB, é intitulado “Cês acharam que eu ia morrer cedo? Narrativas e projetos de vida de jovens homens negros em Cachoeira-BA”. Para o estudante, Cachoeira esconde através de seus títulos históricos, uma série de necropolíticas aplicadas direta e indiretamente pelo Estado brasileiro.
Já Elaine, de 26 anos, cientista social e mestranda pelo mesmo Programa, se inscreveu com o artigo “Branca é lésbica e preta é sapatona oh o erro?!”: um estudo sobre mulheres negras lésbicas e sapatonas em um bairro de Salvador/Ba”. A Menção foi recebida no dia 29 de agosto, Dia da Visibilidade Lésbica, e seu estudo é um desdobramento do seu TCC, uma pesquisa sobre as relações familiares de lésbicas e sapatonas negras em um bairro periférico de Salvador/BA, intitulado “Não te criei para isso.”
“Cês acharam que eu ia morrer cedo?”
Integrante do grupo de pesquisa Patrimônio, Territorialidade e Violência, Danrlei é agitador cultural em Cachoeira (BA), onde realiza oficinas em escolas públicas e bairros periféricos discutindo masculinidades negras a partir de letras de rap. O cachoeirano é MC, e tem um EP que leva o mesmo nome do seu artigo.
A perda de amigos que cresceram com ele e a prisão do irmão durante a graduação foram fatores que o fizeram se sentir deslocado da universidade. A dificuldade de definir um projeto, o fez acreditar que não pertencia ao espaço acadêmico.
Foi quando desabafou com a professora Dyane Brito e entrou para seu grupo de pesquisa, onde foi incentivado a levar sua própria experiência como jovem negro cachoeirano como projeto de pesquisa. Nesse período, perdeu seu melhor amigo e chegou a fazer terapia, para lidar com a distinção entre a pesquisa e sua vida.
“Eu não estava conseguindo lidar com meu trabalho, mas não queria abandonar o tema porque sabia que era muito mais do que apenas um TCC.”, ressalta. “Assim cheguei ao meu tema: tentar entender como jovens negros de 15 a 29 anos, o corpo que mais morre no Brasil, projeta vida dentro da cidade mais negra do Brasil.”
O estudante pesquisou como as comunidades periféricas de Cachoeira construíam “projetos vitais dentro do cenário de morte engendrado pelo Estado, com o aumento de policiamento drástico, operações policiais clandestinas e oficiais.”
No processo, utilizou o que chama de diálogos abertos como metodologia. E discutiu por quase um ano os projetos de vida de três jovens negros, entrevistando também suas mães, “não no lugar romantizado da mulher guerreira, mas no lugar estrutural que são colocadas criando os filhos sozinhas porque os pais foram presos ou abatidos pelo Estado.”
Para Danrlei, por mais que seu trabalho mostre como a violência é abundante na experiência desse sujeito negro, ela não é a única, e resumir um homem preto à violência também faz parte do racismo. Também constatou que dentro dos projetos de vida desses jovens, o primeiro é a sobrevivência.
“Ironicamente cada sonhos desses pivetes surgem depois de algum trauma. Depois disso começam a tentar se modificar para ficar vivos.”, outros planos que aparecem, conta, são relacionados a conseguir dar uma casa para suas mães e construir carreira no rap.
“Branca é lésbica e preta é sapatona oh o erro?!”
Apenas dois dias depois de defender seu TCC, Elaine Borges se inscreveu no mestrado da UFRB e no Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da UFBA. Passou em ambos, optando por seguir em Cachoeira.
Estudando sobre lesbianidades desde a graduação, a jovem é do bairro de Pernambués, em Salvador, onde nasceu. Cresceu em Santa Teresinha, e há seis anos vive no Recôncavo. Durante seu processo de TCC, Elaine sentiu necessidade de debater também a questão da identidade dessas mulheres negras e lésbicas, encontrando a oportunidade no Prêmio Lélia Gonzalez.
“Nesse processo expliquei pra uma das interlocutoras o que era interseccionalidade. E ela falou: ‘já começa assim: branca é lésbica e preta é sapatona, oh o erro?!’”, a observação da interlocutora virou o título que abre o tópico do TCC e também do artigo. “Ela traz uma indignação em relação a como essas identidades estão sendo construídas. Ela observa e sente a diferença no tratamento entre mulheres lésbicas brancas e negras.”
Nas entrevistas com as três mulheres lésbicas negras de Pernambués para o artigo, percebeu que viam palavra ‘sapatão’ como um xingamento para as outras pessoas. No entanto, as três se referiam umas às outras dessa forma, para ressignificar a palavra.
“Elas observam que lésbica tem um tom higienizador. Quando eu pergunto na entrevista como elas se identificam, respondem lésbica, mas nas conversas informais, usam a palavra sapatão.”, destaca Elaine, que também se identifica como sapatão. A partir do questionamento da interlocutora, passou a se questionar do porque utilizava os dois termos a depender da circunstância e a participar de cursos sobre lesbianidade, onde encontrou outras mulheres negras com os mesmos questionamentos.
“‘Lésbica’ vem de um lugar embranquecido, da Ilha Lesbos, na Grécia, não traz as experiências das mulheres negras. Já sapatão é utilizada dentro do imaginário social da mulher lésbica masculinizada e utilizada no lugar depreciativo.”, pontua. Ela enfatiza que mulheres brancas lésbicas também desconstroem a feminilidade, e que o artigo não é uma tentativa de hierarquizar sofrimentos
O artigo ainda não foi disponibilizado oficialmente, já que algumas revistas científicas estão interessadas na publicação e muitas vezes exigem que a publicação seja inédita.
“A gente não é ensinado a estar em lugar de destaque”
No mestrado, Elaine é orientada pelo professor Tiago Soliva, que a incentivou a submeter seu artigo. Apesar de ter dividido com Danrlei a ansiedade pelo resultado, chegado o dia, os dois estavam em um evento do mestrado. Ao chegar em casa, a estudante ia dormir sem se lembrar da data. Até que recebeu os parabéns de uma professora por mensagem.
“Eu não dormi mais. Recebi vários parabéns de professores e colegas. Foi muita felicidade porque não ganhei o prêmio, mas meu colega sim, me senti representada”, lembra também do sentimento de surpresa, mas não por duvidar da própria capacidade. “Desacreditada porque pessoas negras não são ensinadas a estar nesse lugar de destaque.”
Para a pesquisadora, a necessidade de provar a própria capacidade vem em dobro quando se é negra, de classe baixa, sapatão e periférica. Tendo vivenciado um processo difícil de aceitação da sua sexualidade pela família, se surpreendeu também com as mensagens que recebeu de diversos parentes. “Esse processo de reconhecimento dá um gás.”, completa.
Orientado pelo professor Osmundo Pinho, que pagou metade da sua inscrição, Danrlei também recebeu a notícia de surpresa. Estava jogando basquete, quando foi informado pelo orientador que o artigo havia sido premiado. “Elaine mandou no grupo e a gente começou a comemorar, a universidade inteira falou comigo, meu pai me chamou pra almoçar, minha mãe ficou quase maluca. Estou muito feliz, nos últimos dias estou me sentindo uma estrela. Eu gostei da sensação e quero mais”, completa.
Com Elaine não é diferente. O objetivo da jovem é ser professora universitária na UFRB que considera sua casa, e continuar produzindo sobre questão racial, lesbianidade e contribuir para que seus estudos sejam lidos para formulação de políticas públicas.
“Quero registrar historicamente nossas vivências pra que no futuro tenhamos dados sobre a gente, para ter referência de que sapatão não é coisa errada e que assim possa haver espaços mais seguros pra nossas trocas de experiência”, finaliza.